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Fascismo no Brasil de Bolsonaro

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E na medida em que a consciência da massa é capturada para tanto, essa massa legitima a violência e a desumanização do diferente.
E na medida em que a consciência da massa é capturada para tanto, essa massa legitima a violência e a desumanização do diferente. - Reprodução/Pagina 12
Reforçando-se a convencionalidade burguesa é o grande capital que triunfa

Por Marcio Sotelo Felippe*

Parece que para cada formulador de conceito de fascismo há um conceito distinto. A razão disso certamente está na multiplicidade de aspectos do fascismo, que tem componentes políticos, sociais, culturais e históricos. É um fenômeno extremamente complexo e não é estranho que assim seja.

Umberto Eco chegou a afirmar que aspectos do fascismo podiam ser encontrados até na Grécia antiga. O elenco de características fascistas descritas por Eco assemelha-se a outros que privilegiam a aparência do fenômeno ou aspectos secundários. Culto da tradição, culto da ação pela ação, eliminação da crítica, linguagem pobre, personalidade ressentida, aspectos relativos à sexualidade.

A questão é que em vários momentos da história, e certamente na Grécia antiga, vemos fenômenos assim. Mas isto explicaria por que surgiram, com tanta força, tornando-se extremamente poderosos nas décadas de 20 e 30 do século 20 e levando a humanidade às maiores catástrofes da história? E justamente naquele período?

Não há como desvendar isto sem recorrer ao conceito de luta de classes. Sem ele, todos esses aspectos são como a espuma das ondas do mar. Superficiais e insuficientes para dar conta do fenômeno.

O que houve nas primeiras décadas do século 20 que pode ser identificado como um fator definitivo para a ascensão e hegemonia do fascismo na Europa e espalhando-se pelo mundo? E que nos permitiria identificá-lo no momento que vivemos?

A ascensão das lutas anticapitalistas. E, fundamentalmente, a Revolução Bolchevique. Pela primeira vez desde que a história conheceu a propriedade uma sociedade politicamente organizada socializou os meios de produção. E naquele momento essa expropriação ameaçava espalhar-se.

A reação até então valia-se dos instrumentos, digamos, clássicos de repressão das classes dominantes pela mera violência estatal. Mas uma novidade tão grandiosa tinha que provocar uma reação igualmente grandiosa, um movimento inverso de sentido contrário.

Não bastariam os meios clássicos de repressão, a violência do Estado. Era preciso mais do que isso. Era necessário, além de coagir pela violência, fortalecer os meios ideológicos de dominação. Os valores da sociedade burguesa capitalista. Era preciso que à violência se somasse o controle da consciência da massa. Isto tanto para reforçar a dominação quanto para legitimar a repressão pelo apoio dessa massa. Essa é característica essencial do fascismo, que nos permite distinguir esse fenômeno do século 20, ainda presente, de outros fatos históricos.

Esse controle ideológico funda-se em uma ideia de “normalidade social” e de “patologia social”. Tudo que está de acordo com a tradição, com os valores burgueses da sociedade capitalista é “normal”. O que está fora desse padrão é “patologia”. É como uma doença em um organismo social. Assim, quem defende, seja outra forma de organização social, seja a eliminação da propriedade privada dos meios de produção – ou seja, a esquerda, os comunistas, movimentos de trabalhadores, sindicatos, são como a doença do organismo social.

Da mesma forma, todo tipo de comportamento que possa fugir da tradição e da convencionalidade. Reforça-se uma concepção de sociedade normal, saudável, como sendo apenas a branca e cristã (no caso europeu) capitalista, com os valores da família burguesa e somente hábitos, atitudes e sexualidade que estão de acordo com essa tradição são lícitos.

Em síntese, se faz de toda tradição o bem e do que está fora da convencionalidade burguesa o mal. Sendo o mal, fica desumanizado. Desumanizado, pode ser eliminado. E na medida em que a consciência da massa é capturada para tanto, essa massa legitima a violência e a desumanização do diferente. Ela é parte ativa do processo. Por isso, por exemplo, os ressentidos de que fala Umberto Eco são facilmente cooptáveis. O tipo psicológico de ação pela ação. Os da linguagem pobre etc. Os aspectos de psicologia de massa aparecem. 

No entanto, sem que se utilize o conceito de luta de classes isto tudo não se explica. Não teria causa. A causa é: a manutenção e reprodução da sociedade burguesa capitalista, da acumulação.

Tudo isto esteve presente na campanha de Bolsonaro e está presente no seu governo. Racismo, homofobia, desprezo pelos indígenas, a promessa de eliminar os “vermelhos”, a defesa da tortura, a pulsão de morte, a pobreza cultural e de linguagem. O “esquerdopata” e o “petralha”, associando a esquerda à doença e à delinquência.

Para que serve isso? Reforçando-se a convencionalidade burguesa e seus padrões de comportamento e valores tradicionais, é o grande capital que triunfa, que se legitima para acelerar a acumulação e garantir a reprodução do sistema. Isto se chama fascismo quando: 1. há violência do Estado; 2. há uma dominação ideológica que desumaniza o diferente e desumaniza aquele que não cabe no molde da tradição e dos valores burgueses.  E assim reforça-se a dominação.

* Marcio Sotelo Felippe é jurista e advogado. Foi procurador-geral do Estado de São Paulo

Edição: Daniela Stefano