Coluna

Autonomia das instituições jurídicas: entre a cruz e a caldeirinha

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Augusto Aras, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para ser o novo chefe da Procuradoria Geral República (PGR)
Augusto Aras, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para ser o novo chefe da Procuradoria Geral República (PGR) - Marcos Brandão/Senado Federal
O que sabemos é que, por enquanto, quem seguirá queimando somos nós

Por Vinícius Alves*

Um olhar um pouco mais detido sobre o sistema de justiça brasileiro é o suficiente para perceber a validade de uma tese muito simples. A de que as suas diversas instituições abrigam facções internas que disputam a supremacia umas contra as outras. 

Cada facção é moldada de acordo com visões de mundo que oferecem respostas mais ou menos sistemáticas sobre o papel políticos das suas instituições. Um papel mais autocentrado e mais pretensiosamente técnico diante das causas sociais - o que eu vou chamar de visão conservadora - ou um papel mais ativista, seja em defesa de pautas mais progressistas, seja em defesa de pautas abertamente conservadoras - o que eu vou chamar de visão retrógrada. 

Ao mesmo tempo, esse cenário político é palco permanente para os reclames corporativistas e a demanda sempre permanente por abocanhar salários maiores e mais privilégios. Uma coisa não existe sem a outra, ou seja, essas facções precisam incorporar aos seus programas políticos uma resposta coerente para os anseios remuneratórios da categoria. 

A ideia aqui não é fragmentar a análise por cada uma das diferentes instituições - magistratura, promotoria e defensoria pública -, mas dar uma noção geral do percurso. 

Logo, basta lembrar que a dinâmica traçada no parágrafo anterior foi favorecida pelos ganhos de autonomia financeira permitidos pela Constituição de 1988 e erigidos nas leis orgânicas das respectivas instituições e depois aprofundada pela concessão, dada por parte dos governos petistas e mantida por Michel Temer, da autonomia politica àquelas que ainda não a detinham, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. 

Na prática, o chefe da instituição era aquele mais votado pelos seus pares. Isso quer dizer que cada uma dessas instituições pode ser vista quase que como um sistema político completo, regulando por suas próprias engrenagens o que entra e o que sai, com pouca preocupação com o que pensam os sujeitos que estão de fora, salvo algumas exceções.

A primeira exceção é o movimento para fora feito por facções mais progressistas de buscar ouvir esses sujeitos externos e esquecidos, o que veio a produzir a figura da ouvidoria externa no âmbito da Defensoria, por exemplo. Já a relação de grupos conservadores e retrógrados com as oligarquias locais e com o grande capital passa completamente desapercebida. 

A segunda exceção é a atenção quase paranoica dada a tudo o que poderia retirar a própria autonomia política conseguida a duras penas, seja vindo de fora ou de dentro. Nesse sentido é que todas as facções progressistas eram vistas como uma ameaça à autonomia política dessas mesmas instituições.  

Daqui pra baixo é contradição que não acaba mais. 

Apesar de o PT ter sido o maior fiador da autonomia, as facções progressistas sempre foram vistas como uma ameaça. Isso, dentre outras razões, levou a que essas instituições jamais reconhecessem uma visão de mundo progressista como compatível com a situação ótima de autonomia do sistema de justiça. Afinal, a esquerda é eternamente desconfiada do poder, dos privilégios e, no final das contas, desse Estado Democrático de Direito do qual essas instituições fazem parte – e que a gente sabe que não é tão democrático nem tão de direito. 

Assim, salvo na Defensoria Pública, que de fato conseguiu superar esse dilema e consolidar uma hegemonia progressista, em todas as outras instituições o modelo de autonomia política revelou-se conservador e corporativista.

A defesa intransigente da autonomia e dos seus benefícios implica em evitar ao máximo o contato com os grupos sociais que acreditam ser necessário pensar as diferentes soluções possíveis para os problemas e que defendem o diálogo. O único apoio externo compatível com a autonomia é o daqueles que acreditam que as soluções definitivas já estão postas e que  basta um incremento no poder de implementá-las. 

Afinal, as instituições já são a resposta, o que é preciso é fortalecê-las! A criminalidade está aí, só é preciso combatê-la! Levado ao absurdo de que se não for para elogio ou fazer coro, escutar quem está de fora é uma afronta. É dizer que o trabalho das instituições não é bem feito. É desafiar a própria autonomia. Essa não tolera crítica externa e nem pensamento crítico. 
Nunca tolerou aquilo que, na cabeça deles, era representado pelo PT, muito menos pelo PSOL. Há um sistema e um lugar de poder que não pode ser questionado, que no mínimo tem que ser inflado. 

Bum! É Bolsonaro, a mais limitada e dogmática das criaturas, que rompe com a autonomia política do sistema de justiça ao indicar Augusto Aras, um exímio retrógrado, como Procurador-Geral da República. 

A façanha é tal que é a extrema-direita que contesta de fato e sem remorso a estrutura que assegurava o pacto corporativo-conservador e impõe um limite à surdez autopoiética das instituições. Agora elas serão obrigadas a ouvir o grito agonizante das forças da inquisição, que aspiram a ter o poder de inclusive tacá-las no fogo redentor caso sejam contrárias à sua verdade eterna. Pois é...

Veremos se essa intervenção será capaz de criar de fato uma hegemonia retrógrada apta a acomodar os conservadores e oferecer respostas ao corporativismo crônico. Ou se uma composição entre progressistas e conservadores será capaz de dar combate tendo em vista a recuperação da autonomia perdida. O que sabemos é que, por enquanto, quem seguirá queimando somos nós.

* Vinícius Alves é doutorando em direito na Universidade de Ottawa. Faz parte do GT Sistema de Justiça do IPDMS.

Edição: Daniela Stefano