As pessoas que cuidam de BH e a gente nem vê

Brasil de Fato traz histórias e números que vão mudar a sua visão sobre os servidores públicos

Rafaella Dotta

Por Rafaella Dotta

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG), 17 de outubro de 2019

Tempo vai e tempo vem, em crises ou na época de vacas gordas, há trabalhadores que estão sempre cuidando do nosso dia a dia. O Brasil de Fato MG foi procurar os servidores públicos invisíveis de Belo Horizonte: aqueles que estão cuidando de você, mas ninguém vê. Contamos histórias de pessoas por detrás dos semáforos, das grandes panelas dos restaurantes populares e na reciclagem.

A nossa reportagem percebeu que a realidade dos servidores é muito diferente do que se fala. Leia o depoimento de trabalhadores e tire suas conclusões!

Os servidores trabalham pouco?

A Central de Operação da Prefeitura (COP), na BHTrans, pode mudar a sua opinião sobre isso. Joziane Tulher é servidora há 21 anos, e desde 2015 assiste ao trânsito de BH por um computador e por uma tela de cinema enorme. Ela e seus colegas mudam o tempo dos semáforos, enviam equipes de fiscalização para a rua, mandam reboques e organizam o trânsito. Você achava que o trânsito era espontâneo, não é? Não, ele é vigiado por meio de câmeras em uma sala cheia de pessoas.

E o que Jozi, que é supervisora da Gerência de Integração e Operação de Tráfego, gostaria que os leitores soubessem? “Eu gostaria que as pessoas entendessem melhor o que as instituições públicas fazem. A gente trabalha 24 horas [divididas em turnos], incansavelmente, sábados, domingos, Natal... e as pessoas não têm ideia. Acham que servidor público tem ‘vida boa’”, destaca.

“No horário de pico é muito puxado e nossa atenção é em tempo integral. Não podemos tirar os olhos das câmeras para ajustar os semáforos e atender às solicitações dos usuários”, explica. “Tudo é muito rápido, demanda agilidade e decisão imediata”.

A maioria trabalha 8horas por dia: O Sindicato dos Servidores Públicos e Empregados Públicos de Belo Horizonte (Sindibel) explica que, em BH, cada categoria tem sua lei específica com atribuições, plano de carreira e jornada. Os garis e trabalhadores da construção civil, por exemplo, trabalham 44 horas por semana, já a maioria dos cargos trabalha 40 horas, ou seja, 8 horas por dia, 5 dias por semana.

Os funcionários públicos são insatisfeitos?

Bem, não é o que vemos no Restaurante Popular da Prefeitura de BH. Gerson Jaime Guimarães é um dos cozinheiros que comandam as enormes panelas de 350 litros no Restaurante Popular I. Todos os dias, Gerson entra às 6h30 para começar o preparo do almoço. Enquanto comanda os auxiliares, a cada semana faz uma tarefa diferente: pica, faz salada, guarnição ou carne. Os restaurantes populares atendem a cerca de 5 mil pessoas por dia, no café da manhã, almoço e janta.

“O que eu mais gosto de fazer é a feijoada, dobradinha, pescoço de peru... As comidas que dão mais trabalho são as que mais me dão prazer”, comenta. “Quando eu saio de casa de manhã, eu posso estar cansado, mas venho com vontade de fazer. Cozinho para quase 2 mil pessoas como se estivesse cozinhando para cinco amigos em casa. Eu tenho amor em cozinhar”.

O deleite especial de Gerson é a ceia de Natal. No dia 25 de dezembro, o almoço é de graça no Restaurante Popular I, com arroz, tutu de feijão, maionese, lombo assado, suco e fruta, feito por voluntários. “É uma correria só. Tanta gente na cozinha, no salão tem criança ganhando brinquedo, tem família na fila até virando o quarteirão. É uma loucura!”, relembra Gerson. “E mesmo se eu sair daqui amanhã, eu vou continuar vindo”.

Servidor ganha bem e não produz?

A maioria dos funcionários públicos não diria isso. Há 28 anos, Reginaldo Perdigão trabalha na coleta de resíduos. Hoje, o seu local de trabalho é bem distante: quilômetro 531 da BR 040, onde funciona a Central de Tratamento de Resíduos Sólidos. Perdigão é a pessoa que, junto com os colegas, produz material de construção a partir de entulhos que são jogados no lixo pelos cidadãos.

“Eu retiro a impureza do entulho. Retiro plástico, faca, prego, o que vier eu recebo. Eu faço a triagem para o material ser processado”, conta. Depois da triagem, o entulho entra no britador e sai como bica corrida, rachão, brita 1, brita 0 e areia. Esses produtos são usados em construção, pavimentação de estradas e de viadutos, e os trabalhadores se orgulham de fabricarem peças “melhores que as compradas”.

O trabalho é grande, mas nem por isso o salário também é. “A minha profissão e todos os amigos que trabalham na superintendência de limpeza urbana têm um salário muito desvalorizado”, lamenta Perdigão.

Israel Arimar, presidente do Sindibel, afirma que existe uma desigualdade entre os salários dos funcionários públicos, o que faz a população pensar que todos ganham bem. “Tem juiz que recebe R$ 500 mil no contracheque. Nós temos 60 procuradores e 100 fiscais de tributos que recebem acima do teto (R$ 24.700). Porém, ACEs e ACSs [Agentes de Controle de Endemias e Agentes Comunitários de Saúde] recebem até R$ 1.300. A média de salário do servidor municipal em Belo Horizonte é R$ 2.000, e ainda é descontada uma parte para a previdência e o vale transporte”, pondera.

Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2017, mostra que os maiores salários do funcionalismo são de servidores federais e estaduais. Nos cargos municipais, a grande maioria, em todo o país, ganhava abaixo de R$ 3.269.

Brasil tem poucos funcionários públicos

É costume criticar que nosso país tem o “maior número de funcionários públicos do mundo”. Porém, a frase não é verdadeira. Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que os países mais ricos do planeta são os que mais possuem funcionários públicos, e o Brasil não é um deles.

A Noruega, a Dinamarca e a Suécia lideram a lista, e têm uma quantidade de servidores que chega a quase 30% do número de habitantes. Canadá e Grécia possuem 18%, enquanto Estados Unidos empregam 15% de servidores. Já o Brasil tem apenas 5,5% de servidores públicos em relação à sua população, segundo o Atlas do Estado Brasileiro.

A professora da UFMG e advogada de direito público Maria Tereza Fonseca Dias explica que é preciso analisar a função de cada modelo de Estado. Os Estados de bem-estar social (preocupados com o bem-estar de toda a população) têm mais serviços públicos, enquanto os países liberais (que deixam os serviços essenciais nas mãos de empresas) investem em atividades regulatórias e fiscalização. O que os liberais pregam, assim, não seria a extinção dos funcionários, mas sim que eles cumpram outras funções.

No caso do Brasil, “comparando dados, a gente conclui que não existe excesso de servidores. Considerando o modelo de Estado que está na nossa Constituição Federal, o que é preciso desenvolver, nós temos uma força de trabalho dentro de uma expectativa condizente”, avalia Maria Tereza.

Já Israel Arimar, presidente do Sindicato dos Servidores Públicos e Empregados Públicos de Belo Horizonte (Sindibel), é enfático em dizer que há número excessivo de funcionários em cargos de confiança, cargos burocráticos e no legislativo, enquanto faltam em áreas de saúde e educação. Ele classifica isso como uma “má distribuição” de pessoal.

“Veja em uma UPA: o sindicato não consegue nem fazer reunião com os trabalhadores porque eles não têm 15 minutos para se ausentar por conta do volume de trabalho”, exemplifica. Na opinião do presidente do sindicato, a ideia de que o país tem muitos servidores é um mito.

Números em Belo Horizonte: Na capital mineira existem hoje 46.806 agentes públicos municipais. No ano 2000, esse número era de 26.018, o que demonstra um aumento de 179% em quase 20 anos. A Prefeitura afirma que, em novembro, irá colocar em prática um novo método de avaliação dos funcionários públicos, a “Avaliação de Desempenho por Competências”, que será online e tem a função de analisar os pontos fortes e fracos de cada servidor.

“Eles entraram em greve!”

“8:30, Josias, vamo rápido nesse café que o ônibus vai passar. Eu sei que você não dormiu direito, mas fazer o quê? Vamo embora. O 4102 não atrasa”. Saem os dois para a rua em direção ao ponto de ônibus. Muita gente anda, uns rápido outros devagar, sobem e descem a avenida do Cardoso, num dia ainda clareando. Dona Ana pesca uma coisa diferente no ar. “Tá esquisito”.

“Motorista, o que tá acontecendo que o povo do 4102 não veio hoje? Só eu e Josias, que luxo HAHAHAHA”, ri don'Ana. “É? Você viu uns acidentes? Meu Deus! E os carros batidos! E o Bombeiro? Nada? Ligaram mais de dez vezes e ninguém atendeu? Nossa, Josias, repara! Tá bom, moço, para pra gente aqui. Bom serviço!”

Descem no centro de Belo Horizonte, na Praça Sete, que está cheia de lixo pelo chão, sem garis. “Josias! Os semáforos estão tudo piscando amarelo, os carros aproveita e passa nessa velocidade... Não tem um polícia, não tem um guarda. Por que que esse semáforo tá assim?” Andam mais um quarteirão e no poste um cartaz grita: “GREVE GERAL do SERVIÇO PÚBLICO – Contra a Reforma da Previdência”. “Meu pai eterno!! É isso. Tá tudo parado porque os empregado público estão de greve! Pega o celular pra mim, rápido, liga pra Carol. Deixei a menina sozinha em casa, com os irmão pra levar pra escola. Ela tem que trabalhar! Se não tiver escola pros menino ela perde o emprego... tá na experiência ainda. Liga, Josias, corre! É, é esse número (tu... tu...) ‘Carol, tá tudo parado, minha filha, a escola dos menino também deve que está em greve. Eu sei, Carol, eu sei. Fazer o quê? Fica com eles! Tá. Tchau.’ Ou essa menina vai ter um treco ou sou eu, Josias. Acho que sou eu... ai, ai, ai! (coloca a mão no peito)”.

Seu Josias olha pra todos os lados, pensa no SAMU, que deve estar de greve, pensa em correr e pegar o Losartana em algum posto de saúde, que deve estar de greve. Que adianta levar pro hospital, se está em greve? Sem dinheiro, liga pro 156 e ninguém atende. “Aii... corre!”, implora Ana, sentada no degrau do teatro público fechado e sem ninguém (em greve?). Nessa hora desmaia.

Quando acorda vê tudo branco, está numa maca e num lençol azul claro. “Soro, enfermeira, hospital”, entende don'Ana. Olha pra Josias com uma cara de sono e preocupação: “Você sabe que a gente não pode pagar”. “Meu bem”, Josias diz, “a greve é na outra semana. Hoje, a gente esqueceu, mas é só carnaval”.

Reportagem especial: Rafaella Dotta (texto e fotos) / Edição: Joana Tavares / Foto da greve: Oswaldo Corneti / Fotos Públicas