Paraná

CRÔNICA LATINO-AMERICANA

As palavras e as coisas e os Golpes

O sociólogo Florestan Fernandes reflete sobre o fato de as diferentes classes sociais em luta disputarem palavras

Brasil de Fato I Curitiba |
Já no Chile, em sua luta por democracia depois de décadas, ao contrário, jovens manifestantes podem ser classificados como vândalos
Já no Chile, em sua luta por democracia depois de décadas, ao contrário, jovens manifestantes podem ser classificados como vândalos - Pedro Carrano

“Um golpe de Estado é algo curioso. Aqueles que o realizam nunca admitem que o fizeram”, Vijay Prashad

 

No começo da semana, eu fui até a feira perto de casa. Morando há pouco tempo no centro da capital, começo a criar a rotina de que segunda-feira é dia do sacolão de frutas que fica na praça da mulher nua e do homem nu. Logo que entrei na fila fiquei me deliciando com o odor da manga, fortíssimo, da goiaba e as diversas frutas que estavam naqueles cestos.

Mas, na hora, talvez pelo momento que estamos vivendo, me veio na mente a frase do poema do dramaturgo alemão, Bertolt Brecht: “Vocês não vão mais reconhecer as frutas pelo sabor”. Fiquei pensando na relação entre palavras e coisas, um debate tão antigo quanto um verso de Shakespeare, uma reflexão presente também na obra de Sartre e de tantos outros autores. Pensei rapidamente, ao ligar o rádio ou abrir a tela do celular, na forma como a situação política dos países de nossa América Latina costuma ser apresentada pela mídia comercial.

Na Venezuela, Nicolás Maduro é um “ditador”, não importa a História do país, como as pessoas por lá se organizam e se há um bloqueio econômico determinado pelo presidente dos EUA, Donald Trump. Porém, o golpe realizado contra Evo Morales no dia 9, na Bolívia, com o expediente de racismo, humilhação, violência e assassinatos, é uma situação apresentada muitas vezes como a correção de um suposto autoritarismo de Morales. Na Síria, país devastado pela guerra, as forças que se opõem à Assad em uma guerra sangrenta têm o romântico título de “insurgentes”. Quem não quer ser insurgente, não é mesmo? Já no Chile, em sua luta por democracia depois de décadas, ao contrário, jovens manifestantes podem ser classificados como vândalos. E nisso naturalizamos o fato de que 219 manifestantes até agora tiveram os olhos arrancados por balas de borrachas e pelo procedimento bárbaro das forças militares.

O sociólogo Florestan Fernandes soube abordar bem este tema no livro “O que é revolução” (editora Expressão Popular) quando reflete sobre o fato de as diferentes classes sociais em luta (sobretudo a burguesia e o proletariado) disputarem palavras, sentidos e darem diferente conteúdo até mesmo para expressões iguais. Afinal, o que significa a palavra “liberdade” para a elite branca e diminuta boliviana? E o que significa a mesma palavra para um trabalhador indígena aimará, ampla maioria da população. Quem possuía mais liberdade durante o governo de Evo Morales? E por que essa liberdade que os indígenas foram conquistando ao longo do governo Evo é inaceitável para a elite golpista, para os altos cargos do exército, para o corpo diplomático a serviço dos Estados Unidos?

Lutei pela liberdade

“Ora, mas então tudo se resume a uma guerra de palavras, é isso o que você está dizendo?” Minha filha ou até os gatos lá de casa poderiam questionar, com seus olhos curiosos. A verdade é que não. O que muitos analistas da mídia simplesmente ignoram é o fato de os países possuírem História, contexto. Principalmente, possuem uma população trabalhadora, com sua condição de vida, suas aspirações, suas cores. E, por outro lado, possui também uma elite política e econômica. Que, na América Latina, não tem aceitado fazer concessões mínimas para as pessoas mais pobres. E a mídia comercial emite opiniões sobre realidades e sobre uma população que desconhece.

Fernando Lugo no Paraguai, Zelaya em Honduras, Dilma no Brasil, Evo na Bolívia foram tirados do governo por uma elite e classe média falando em valores morais. A verdade, porém, é que estavam descontentes com a ampliação de direitos sociais desses governos.

No fundo, embora muitos resistam ao termo ou tentem jogá-lo para baixo do tapete, estamos falando da velha luta de classes, que agora estoura com tudo em vários países do nosso continente submerso.

Eu me recordo que, em 2005, era dezembro e eu estava em plena cidade de Estelí, na Nicarágua, país da América Central. Eu acabava de chegar, cansado, vindo de ônibus do pequeno país de El Salvador, depois de uma viagem com umas quatro paradas e travessia de duas fronteiras. Chego ao alojamento familiar que encontrei. Logo um senhor se apresentou, também hospedado naquela noite, e me convidou para tomar uma cerveja. Na prosa truncada, começou se apresentando como um Contra que lutou e se opôs à revolução sandinista – quando camponeses e trabalhadores tomaram o poder, entre 1979 e 1990. O que mais me assustou naquele episódio foi o fato de ele ter dito: “Lutei pela liberdade”. Qual liberdade, pensei? Os camponeses não haviam conquistado a terra com os sandinistas? Por que será que aquele colega de alojamento os combateu? Será que ele estava pensando na “liberdade da população”, como dizia, ou apenas na sua própria liberdade de explorar os outros e manter seus próprios privilégios?

Edição: Lia Bianchini