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Coluna

A mancha se espalha pela cultura

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Foto do Festival Vozes do Brasil em 2016, no Rio de Janeiro
Foto do Festival Vozes do Brasil em 2016, no Rio de Janeiro - Mídia NINJA
Não é novidade. Bolsonaro sempre foi inimigo de liberdades, crítica e criação

Defender que não houve ditadura no Brasil a partir de 1964 é grave. Querer que o pior instrumento daquele tempo volte à cena é pior ainda. Mas o mais grave é querer transformar o AI-5 e suas consequências em algo natural na vida da sociedade. É o que temos acompanhado a cada dia, com relativa surpresa e pouca reação à altura, com impactos em diversos setores da sociedade. A mancha de óleo que varre o litoral é um símbolo nefasto da mesma penetração insidiosa da onda fascista que se espalha pelo país. No caso da poluição, o governo mostrou inépcia, em relação ao extremismo, tem se mostrado operoso em todas as áreas da administração.

Um dos maiores equívocos tem sido tentar qualificar o governo Bolsonaro em fatias. Como se houvesse uma porção reacionária em costumes e outra moderna em economia. E, com isso, se justificasse certa leniência comportamental em nome de um ganho material mais consistente. A ameaça velada de receber como inevitável um novo ataque à democracia, desta vez partindo do titular da economia, Paulo Guedes, mostrou como essas duas pontas estão atadas. O projeto econômico do ministro só é viável num contexto de anulação de liberdades essenciais, como ocorreu no modelo aprendido por ele em Chicago e aplicado no Chile da ditadura assassina de Pinochet.

Não temos o ato institucional soprando no cangote, como em 1968, mas convivemos abertamente com algumas de suas diretrizes mais medonhas. Como as diversas formas de censura ao pensamento e às artes, que tornam pálido o panorama cultural. Se não houve cassação do direito ao habeas corpus, a justiça por sua vez exibe escancaradamente em seu partidarismo e bate cabeça entre valores universais do direito em troca do brilho do populismo punitivista. Decisões do STF são ignoradas por cortes inferiores, julgamentos comprovadamente fraudados em sua condução são incensados, ministros das altas cortes jogam para a plateia, não para a Constituição.

O anúncio do uso da força contra as manifestações populares, demonizadas como sendo “de esquerda”, ensaia avanços poderosos, assim como ocorreu na perseguição à “ameaça comunista” durante a ditadura militar. Chegamos a um ponto ainda mais preocupante, que transforma a exceção em regra, inclusive com tradução legal. É o caso da defesa de autorização expressa e da impunidade a ser conferida a policiais que alvejarem manifestantes em passeatas democráticas que expressem insatisfação com o governo. Ou da anunciada liberação para a violência privada no campo, numa espécie de garantia oficial para ação das milícias.

No entanto há um campo em que a penetração das diretrizes fascistas é ainda mais prejudicial aos valores de civilização: a cultura. E é exatamente em direção a esse setor, que atua no longo prazo da formação humana para a vida em sociedade, que as baterias do governo agora estão dirigidas. Não que seja novidade. Bolsonaro sempre foi um inimigo da liberdade, da crítica e da criação. Nunca aceitou a diversidade e tem uma visão tacanha do potencial da humanidade. O mundo ideal para ele se reduz à sua turma de boçais.

Essa visão agora ganha sustentação institucional com a nomeação dos responsáveis por gerir a política pública de cultura no âmbito federal. Depois de extinguir o Ministério da Cultura e abrigar a pasta sob a falta de visão de um confesso ignorante (e depois deslocá-la para outro que, além de ignorante, é investigado por corrupção), Bolsonaro agora completa a obra com a escolha do estafe que vai tocar o setor. São nomes tão insignificantes que não valem a citação: ninguém os conhece. No entanto exibem todos, em seus perfis, a filiação aos princípios da extrema direita, no que ela tem de mais chauvinista, antilibertário, arrogante, convencional, proselitista e regressiva. Uma espécie de terra plana da cultura.

 Para ficar em poucos e expressivos exemplos. A Funarte, responsável pela política federal no campo das artes, em matéria de fomento e manutenção de espaços, foi entregue a um dramaturgo, Roberto Alvim, que ganhou o cargo por ter ofendido a atriz Fernanda Montenegro. Mas o prêmio parece ter sido pouco para tanta ignomínia e ele foi alçado ao comando supremo da subpasta da cultura, hoje integrada ao turismo. Alvim, como dramaturgo, escreveu sua derrocada moral em dois atos, ambos sórdidos.  

Ao que parece, estupidez, para o atual governo, é currículo. A capacidade de ecoar - e por vezes se antecipar - à estupidez do presidente em assuntos relativos ao setor é um ativo poderoso para crescer na carreira. A ofensa é método de expressão da meritocracia: quanto mais violento, mais adequado para a função de abater o inimigo. É assim que o governo considera os artistas, os intelectuais e até mesmo o público. A política da área é uma estratégia de extinção programada.

Outro nome que evoca em sua trajetória exatamente o oposto da atribuição de seu cargo é Sérgio Nascimento de Camargo, que assume a presidência da Fundação Palmares, que tem como atribuição institucional valorizar a cultura de matriz africana. Ele já se manifestou contra as cotas para negros nas universidades, contra o Dia da Consciência Negra e chegou mesmo a defender que a escravidão, embora cruel, deixou um saldo positivo para os descendentes negros brasileiros. 

Não bastasse a ignorância e má fé, Camargo também segue o mesmo protocolo de ódio e ofensa, que certamente deu a ele pontos preciosos para indicação ao cargo. Atacou nomes de expressão nas artes, na política e no pensamento, todos negros como ele. Ofendeu Lázaro Ramos, Preta Gil, Camila Pitanga e Martinho da Vila, entre outros, acusando-os de faturar com o vitimismo e sugerindo que se mudem para o Congo, uma forma ainda mais preconceituosa de atualizar o inefável “vai para Cuba”, mantra da direita raivosa. 

Sobre a ativista norte-americana Angela Davis, uma das mais importantes pensadoras políticas de nosso tempo, disse que se trata de “uma baranga comunista”. Para completar sua torrente de impropérios, agrediu a memória da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018, a quem não considera negra, mas parda, dizendo que ela fazia defesa de bandidos e traficantes e patrocinava uma agenda LGBT “depravada”.

A esses nomes se somam ainda a indicação da nova secretária do audiovisual, a inexpressiva Katiane de Fátima Gouvêa. Desconhecida de todos os integrantes do setor, ela tem como maior atributo uma derrota eleitoral e a participação na Cúpula Conservadora das Américas. Seu nome apareceu pela primeira vez ligado ao cinema exatamente na defesa da extinção da Ancine proposta por Bolsonaro. Ou seja, Gouvêa é alguém que não quer política pública para o audiovisual e por isso assume a secretaria do audiovisual. Não precisa explicar mais. 

Frente ao poderoso escalão de ponta formado por Bolsonaro, Moro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo, Abraham Weintraub, Ricardo Salles e Damares, parece que os novos dirigentes da cultura são café pequeno na escalada rumo ao fascismo. É aí que reside o grande perigo em tratar a cultura como acessório menos ameaçador. As ações dessas figuras nefastas que assumem a operação do setor são indicativas de uma visão de longo prazo da destruição dos valores mais basilares da democracia, dos direitos humanos e da inteligência. Enfim, da civilização. 

Pode ser que a cultura tenha demorado mais tempo para compor de forma acabada seu cenário de horror, com seus algozes a postos para a tarefa da destruição. Mas também é possível que seu estrago seja mais longo e profundo. A resistência, por isso, não pode esperar a próxima sessão para se manifestar, nem deixar a luta cultural para depois de outras batalhas. O palco da democracia já estará desmontado e as luzes apagadas.

Edição: Joana Tavares