Coluna

A normalidade em dias de tormenta

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Secretário Fábio Wajngarten é proprietário de empresa de comunicação que recebe dinheiro de emissoras e agências contratadas pelo governo
Secretário Fábio Wajngarten é proprietário de empresa de comunicação que recebe dinheiro de emissoras e agências contratadas pelo governo - Reprodução/Twitter
Nos primeiros dias de 2020, a mesma receita: estagnação, austeridade e polêmicas

O Ponto está de volta. Depois de um breve recesso, descobrimos que está tudo bem, tudo normal: um ministro usando o Estado para negócios privados aqui, um secretário que cita frase nazista acolá. Normal. Não há nada aqui para se preocupar. O importante é a economia na direção correta. É isso mesmo? Nos acompanhe mais uma vez em 2020 para não perder o fio destes dias de tormenta.

1. Dias de tormenta. Os primeiros dias de 2020 nos brindaram com algumas revelações interessantes sobre o, digamos, estilo de governar de Jair Bolsonaro. No livro “Tormenta”, que está sendo lançado por estes dias pela jornalista Thaís Oyama, fica confirmado que Bolsonaro é um sujeito paranoico, com uma visão de mundo bastante limitada, um raciocínio binário segundo o qual “quem não é seu amigo é seu inimigo” e que atende a muitos arroubos de seu filho Carlos por medo de que ele “faça uma besteira”. Também ficamos sabendo que Bolsonaro mandou Fabrício Queiroz dar um perdido no depoimento que daria ao MP do Rio, aguardando que o caso se resolvesse “de outra maneira” no STF, como de fato aconteceu. Além disso, que Sérgio Moro quase foi demitido, e só não o foi porque Augusto Heleno teria advertido Bolsonaro que, sem Moro, o governo acabaria. Em uma reunião que selou a permanência de Moro, o ministro da Justiça teria chorado ao saber que seria demitido, e prometeu mudar de comportamento, o que se deduz que realmente fez a partir de uma análise de suas postagens no Twitter. Desde então, porém, ambos mantêm uma relação ambígua: da mesma forma que podem formar uma "chapa imbatível" em 2022, ambos detêm um poder de destruição sobre o outro.

2. Dias de normalidade. A Folha de São Paulo revelou na quarta (15) que o chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), Fabio Wajngarten é sócio de uma empresa, a FW Comunicação e Marketing, que recebe dinheiro de emissoras de televisão e agências de publicidade contratadas pela própria Secom. A legislação vigente proíbe integrantes da cúpula do governo de manter negócios com pessoas físicas ou jurídicas que possam ser afetadas por suas decisões. Segundo Wajngarten, Bolsonaro sabia dos negócios. Entre as emissoras que contratam a FW estão Band e Record, e próprio secretário disse que já fez negócios com SBT e RedeTV! Essas emissoras têm recebido um bolo maior da verba publicitária do governo Bolsonaro. O PSOL protocolou uma ação popular na Justiça Federal pedindo a anulação da nomeação e a oposição no Congresso deve convocar o secretário a depor na Comissão de Transparência. Como reagiu Bolsonaro? Atacou uma repórter da Folha durante a tradicional coletiva no Alvorada e disse que “vê lá na frente” se seu secretário fez algo de ilegal. Normal. Bola pra frente. É bom lembrar que o ministro do Turismo está firme no cargo mesmo sob a acusação de liderar o esquema das candidaturas laranjas do PSL e a demissão do secretário seria uma vitória do jornal eleito como seu principal inimigo por Bolsonaro. Porém, o que dá mais tranquilidade a Bolsonaro é que vivemos tempo de uma nova normalidade. Nada é escândalo quando o presidente ignora as regras. Também não há mais aquele cerco da imprensa que só termina com a derrubada de um ministro. No mesmo dia em que um colunista liberal escreveu em sua coluna que está tudo perfeitamente normal no Brasil, o secretário de Cultura anunciou uma linha de financiamento para projetos culturais que revisem a história do Brasil do ponto de vista conservador. No vídeo em que anunciou o programa, cometeu a audácia de citar uma frase de Goebbels, o ministro da propaganda nazista. Tudo normal. Temos insistido aqui no Ponto que esta nova normalidade é sustentada pelas instituições e pelo mercado, satisfeitos com a retomada da economia.

3. Retomada? Que retomada? Prova da retomada seria o crescimento do PIB em 2% já neste ano, segundo o governo. Mas economistas avaliam que a previsão exagera no otimismo, enquanto a ONU prevê apenas 1,7% de crescimento brasileiro. Se os dados futuros não são auspiciosos, os índices recentes também não autorizam essa empolgação do governo: as vendas no varejo subiram apenas 0,6% em novembro sobre outubro, impulsionadas pela Black Friday. Na comparação com novembro de 2018, a alta foi de 2,9%. Os números, porém, frustraram as estimativas do mercado, que projetava crescimento de 1,1% ante outubro e de 3,9% na comparação com novembro de 2018. Aliás, o caso nos faz lembrar da pesquisa que uma associação de shoppings encomendou inflando o volume de vendas no Natal, revelando a adesão inescrupulosa de empresários com o bolsonarismo. O volume de serviços também caiu e a produção industrial recuou 1,2% em novembro, interrompendo três meses positivos consecutivos. O setor industrial, aliás, segue em queda com resultados negativos em dez dos quinze locais pesquisados, registrando o pior índice desde 2015. Parece miopia com os temas que atendem os mais pobres, mas é deliberado. O governo brasileiro tem uma crença: a recuperação econômica será a conta-gotas, apoiada na iniciativa privada e para isso basta entregar tudo o que mercado pedir. Os investimentos públicos foram reduzidos ao mínimo para forçar empresas e bancos a se atreverem a ir mais ao mercado. Nisso, Bolsonaro e Guedes contam o apoio dos 57% dos mais ricos, mas de apenas dos 39% dos que ganham até dois salários mínimos. Lembrando que Guedes já tem em andamento os três propostas de emenda constitucional que ampliam a austeridade fiscal, com o fim dos pisos para gastos em Educação e Saúde do governo, estados e municípios, uma reforma do aparelho do Estado em elaboração, a previsão de privatizar todas as estatais até o fim do mandato e uma mãozinha do Congresso para fazer a reforma tributária.

4. Austericídio. Se tem uma constante nos governos que seguem a cartilha do Estado mínimo é que, mais cedo ou mais tarde, o Estado colapsa. Os cariocas que o digam: com uma companhia de abastecimento loteada por pastores evangélicos, convivem com água com cor, cheiro e gosto de terra. No plano nacional, o retorno das filas do INSS é uma mostra de como a política de austeridade acelerada com o impeachment de 2016 está resultando na piora dos serviços públicos - agravada com a incapacidade de gestão do governo Bolsonaro. São pelo menos três motivos para a fila de dois milhões de usuários esperando a concessão de aposentadorias (destes, 1,3 milhão aguardam há mais de 45 dias): antes de 2019 o quadro do INSS se reduziu drasticamente, o Ministério do Planejamento negou a realização de um concurso e a reforma da Previdência provocou uma corrida pela aposentadoria e também provocou a necessidade de atualização do sistema de cálculo da aposentadoria, o que ainda não foi feito. Para o ex-ministro da Previdência, Ricardo Berzoini, o problema é resultado de falta de gestão, falta de planejamento e represamento proposital de recursos para fechar as contas de 2019. O último concurso para o INSS foi realizado em 2015. Diante do problema, Bolsonaro lança mão da única ideia que parece ter: chamar os militares. A ideia tem pelo menos dois problemas a princípio: uma certa resistência das próprias Forças Armadas e a possibilidade de que o assunto vá parar na Justiça. Em meio à crise, o governo publicou no Diário Oficial de quinta (16) um decreto que inclui a Dataprev, responsável pela tecnologia e processamento de dados da Previdência Social, no programa de privatizações. O órgão já anunciou um plano de demissão que afetará 493 dos cerca de 3,3 mil servidores. Teria ficado na conta da Dataprev a demora na atualização do sistema com as novas regras. Lembrando que a privatização da Dataprev - e também do Serpro - representa colocar uma imensa base de dados da população brasileira na mão de empresas privadas.

5. O primeiro round vem aí. Bolsonaro não tem muito tempo para resolver a questão econômica, porque a primeira avaliação do governo com consequências reais está logo ali, nas eleições municipais. Ainda não se sabe qual será a influência de Bolsonaro, já que o Aliança para o Brasil ainda não saiu do papel, mas está ganhando aquela força dos cartórios, tanto que cinco partidos reclamaram ao Conselho Nacional de Justiça do apoio do Colégio Notarial do Brasil para a coleta de assinaturas para a criação da nova sigla. Segundo o CNJ está, claro, “tudo dentro da normalidade”. Depois de 2018 ter posto abaixo tudo o que pensávamos sobre as eleições, fica a pergunta do que teremos pela frente neste ano. Para o cientista político Juliano Corbellini, o bolsonarismo transcende partidos e, na vida real, Bolsonaro terá vários candidatos por várias legendas, assim como ainda haverá um rescaldo do antipetismo, mantendo campanhas aquecidas e radicais. O cientista político também acha que o uso do Whatsapp nas campanhas veio para ficar. Resta saber se a máquina de disseminação de mensagens estará intimidada ou não com os primeiros avanços da CPI das Fake News, que já chegou aos números internacionais usados na campanha passada.

6. Segurança. Uma das cartas na manga que vem sendo usada pelo governo é a redução nas taxas de homicídios no Brasil, que seria efeito direto das políticas federais para a segurança pública. Porém, um levantamento do Instituto Sou da Paz com dados até 2018 mostra que a diminuição dos homicídios vem sendo registrada em diversos Estados desde 2014, e as causas são variadas. Ou seja, a redução dos homicídios não seria obra do governo Bolsonaro em apenas um ano, tampouco do Mago Merlim, como escreveu Sergio Moro no começo do ano. Inclusive, as razões divergem daquelas defendidas pelo ministro da Justiça em seu pacote anticrime: em resumo, uma polícia mais inteligente é mais eficaz que uma polícia violenta. Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV, Renato Sérgio de Lima lembra o óbvio: a redução dos homicídios se deve a uma conjunção de fatores, são os governos estaduais os responsáveis pela maior parte do gasto em segurança e questões específicas de determinados estados impactam no cenário nacional. Exemplo: no ano de 2017, estados do Norte e do Nordeste elevaram os números de homicídios, em função do agravamento dos confrontos entre facções. Quando, no ano seguinte, o foco de tensão e violência foi controlado,  a redução se "nacionalizou". 

7. Toffoli garantidor do corporativismo. O projeto anti-crime de Moro foi elaborado com uma série de medidas punitivas e dentro da concepção autoritária que marca promotores e juízes da Operação Lava-Jato, mas propositalmente, no Congresso, os parlamentares incluíram um Cavalo de Troia, a figura do juiz garantidor. Bolsonaro promulgou a lei, contrariando o pedido de Moro, que sabe a quem a proposta se dirige. As duas maiores entidades que representam os juízes e o PSL recorreram ao STF para que fosse declarada a inconstitucionalidade da lei ou para que ela tivesse sua vigência adiada. Já a OAB defende a proposta do juiz de garantias. Por fim, o presidente do STF Dias Toffoli saiu em socorro da categoria e suspendeu na última quarta (15) a aplicação do juiz de garantias. A decisão é provisória e vale por seis meses, a partir de 24 de dezembro. Segundo o integrante do IBCCrim, Mauricio Stegemann Dieterm, a decisão de Toffoli sobre juiz das garantias é ?equivocada? e atende aos interesses de uma magistratura “sem maturidade do ponto de vista da cultura democrática. Estão numa espécie de adolescência, de afobação, com essa pretensão de punir a qualquer custo. Ou achando que juiz é agente de segurança pública”. Para a aplicação do juiz de garantias, Toffoli estabeleceu uma “regra de transição”: nas ações penais já em curso, ou seja, naqueles casos em que a denúncia já foi recebida, não deve haver mudanças na condução dos processos. Mas, naquelas em que a acusação formal ainda não foi aceita por um juiz, a nova legislação já deve produzir efeitos. Esse é o caso, por exemplo, das investigações sobre Flavio Bolsonaro, que ainda não possui ainda denúncia do Ministério Público.

8. A guerra contra a Amazônia continua. Nada indica que a pressão internacional vá conseguir conter o processo de destruição na Amazônia com aval do governo. Desde maio de 2019, o crescimento do desmatamento tem sido constante, na comparação de um mês com o mesmo mês do ano anterior. A única exceção foi outubro. Em dezembro passado, o desmatamento na Amazônia cresceu 183% na comparação com dezembro de 2018. Todo o rastro de destruição no ano passado pode anunciar um aumento ainda maior das queimadas em 2020. A opinião é da ecóloga brasileira Erika Berenguer, das universidades britânicas de Oxford e Lancaster, que alerta: a quantidade de material seco pode servir de combustível para os desmatadores ilegais, que agem sem serem incomodados pelo governo federal. Tanto é que a ong Humans Right Watc, na parte dedicada ao Brasil em seu relatório mundial, afirmou que as políticas ambientais do governo Bolsonaro “deram carta branca às redes criminosas que praticam extração ilegal de madeira na Amazônia e usam intimidação e violência contra povos indígenas, comunidades locais e servidores de agências ambientais que tentam defender a floresta”. Por exemplo, graças a um decreto emitido em abril que exige audiências de conciliação para infrações ambientais, basicamente nenhuma multa ambiental foi aplicada no Brasil. Na prática, caminhamos a passos rápidos para o colapso da Amazônia, o ponto em que será impossível reverter a destruição, segundo pesquisa do engenheiro florestal Paulo Brando. Dados da CPT mostram que sete lideranças indígenas foram mortas em 2019, contra duas em 2018. E novos ataques e assassinatos contra indígenas e quilombolas já ocorreram nos primeiros dias de 2020

9. Amanhã será maior? Estudo divulgado pelo Ipea relacionou as questões de desigualdade de renda e acessibilidade aos transporte em 20 cidades do país, calculando, por exemplo, o tempo gasto para usuários de bicicletas ou de transporte público, de acordo com a renda, para acessar serviços de saúde, educação e emprego. São Paulo foi a cidade que reuniu os piores índices de acesso aos mais pobres e também no comparativo entre brancos e negros. Pois desde 1º de janeiro as passagens de ônibus na cidade aumentaram de R$ 4,30 para R$ 4,40. O aumento provocou protestos do Movimento Passe Livre, porém as manifestações têm esbarrado nas ações do governo João Dória, como prisões em massa, revista de jornalistas e uso de bombas de gás. Dez pessoas foram detidas e um fotojornalista relatou agressões dos policiais na noite desta quinta (16). O aumento de tarifas tem gerados protestos, segundo levantamento do Brasil de Fato, também em Macapá, Boa Vista, Recife e Vitória. Brasília e Belo Horizonte também registraram aumentos nas tarifas. No Mato Grosso do Sul, a prefeitura de Campo Grande ensaiou um aumento, mas teve que suspender a medida após uma liminar do Tribunal de Contas do Estado (TCE).

10. Ponto Final: nossas recomendações.

Romper ou dialogar, eis o dilema antibolsonarista. Esquerdas e oposição ao fenômeno bolsonarista e seu produto – o presidente da República – precisam decidir se vão para alguma confrontação ou se conversam com quem está do outro lado. Artigo de Vinícius Mendes no Le Monde Diplomatique.

Cara típica do evangélico brasileiro é feminina e negra, aponta Datafolha. Detalhes interessantes sobre a diversidade existente dentro dos evangélicos, em reportagem da Folha de São Paulo. 

Dilma Rousseff: "Tortura é dor e morte. Eles querem que você perca a dignidade". Após 50 anos de sua prisão na ditadura militar, Dilma fala ao Brasil de Fato sobre memória, companheirismo, resistência e cenário político.

Pesquisador alerta: futuro do mercado de trabalho brasileiro pode ser de dependência 4.0?. Entrevista com Rafael Grohmann, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, no site Sul21.

Lado B do Rio explica como a crise da Cedae foi fabricada para forçar a privatização da empresa.

Vidas entregues. Documentário de 21 minutos da Escola de Cinema Darcy Ribeiro sobre os entregadores de aplicativos de comida.

Hollywood também desconfia de golpe. O documentário de Petra Costa corrobora o que todos no mundo já desconfiavam, houve golpe parlamentar no Brasil em 2016 e continuação em 2018. Artigo de Nelson Barbosa na Folha.

Edição: Rodrigo Chagas