Rio Grande do Sul

OUTRO MUNDO É POSSÍVEL

Avanço da mineração no RS e alterações do Código Estadual do Meio Ambiente em debate

Atividade do Fórum Social das Resistências reuniu ambientalistas, indígenas e militantes de movimentos e partidos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Urgência climática e lutas necessárias foram debatidas no SindBancários, em Porto Alegre
Urgência climática e lutas necessárias foram debatidas no SindBancários, em Porto Alegre - Fotos: Marcelo Ferreira

O avanço da megamineração no Rio Grande do Sul, a alteração no Código Ambiental do Estado e os desafios das lutas ambientais e indígenas foram temas do debate realizado na noite desta quarta-feira (22), no SindBancários, em Porto Alegre. A atividade faz parte do Fórum Social das Resistências e reuniu indígenas, ambientalistas, militantes de movimentos sociais e partidos políticos, pesquisadores e trabalhadores.

Centenas de projetos buscam autorização para iniciar a mineração no Estado. Quatro projetos estão em fase mais adiantada: o da Mina Guaíba em Charqueadas e Eldorado do Sul, para mineração de carvão; o de Retiro, em São José do Norte, para extração de titânio; o Três Estradas, em Lavras do Sul, para exploração de fosfato; e o de Caçapava do Sul para mineração de chumbo, cobre, zinco e outros minerais. Com o novo Código Ambiental do RS em vigor desde o início de 2020, o quadro se torna mais preocupante, pois facilita as regras ambientais para esse tipo de empreendimento.

Nas três mesas em que o debate foi dividido, em comum acordo estão a urgência de uma mudança drástica para amenizar os impactos da ação humana às futuras gerações. Também a importância da luta e da coletividade para enfrentar as grandes corporações e os governos que se alinham aos interesses do capital, massacrando as populações que normalmente já vivem em situação de abandono pelo poder público.

O indígena e o meio ambiente

Na mesa, João Maurício, João Padilha, Claudio Acosta e Leonardo Barbosa 

A primeira mesa ouviu lideranças indígenas, que explicaram sua visão de preservação cultural integrada ao cuidado com o meio ambiente. Foi mediada por João Maurício Farias, cientista social do Observatório Indigenista. Ao apresentar os convidados, ele destacou a correlação da preservação da Mata Atlântica no RS com a presença dos povos indígenas. “O movimento ambientalista precisa ampliar a aliança com os povos indígenas e apoiar a devolução dos territórios a eles”, sugere.

O cacique João Padilha, da comunidade kaingang do Morro Santana, em Porto Alegre, criticou os projetos de mineração e a forma como a sociedade moderna lida com o meio ambiente. “A natureza dá tudo pro ser humano. Não adianta querer lutar contra, o homem branco vai ter que parar, pensar e regredir, porque a tecnologia que estamos usando, a gente vai ter que parar porque estamos usando muito da natureza e não repondo nada”, afirma.

Na sua visão, cabe à humanidade “se unir para salvar o planeta, reflorestando, despoluindo rios”. Mas precisa superar o sistema capitalista, em que “uma meia dúzia leva o lucro e o resto fica sem nada”. O líder kaingang exemplificou com o alto número de moradores de rua que existe nas cidades atualmente: “É gente trabalhadora que estava no campo trabalhando até os anos 1980, pessoas que perderam família, perderam tudo, vieram pra cidade e estão aí sem nada”.

João entende que o Brasil é um país rico, mas precisa de muitas reformas para funcionar, principalmente na área ambiental. Uma delas seria a reforma da terra. “Tem que puxar essa gente de volta pro campo, pra poder plantar o feijão, a batata, o milho e o arroz que a gente come aqui na cidade. Em nível mundial, precisa de um acordo entre o capitalismo e o meio ambiente, senão estamos ralados, porque só existe um planeta”, reflete.

Da etnia Mbya Guarani, Cláudio Acosta é o cacique da aldeia Guajayvi, de Charqueadas (RS), que será diretamente atingida pela Mina Guaíba - projeto da empresa Copelmi que pretende extrair carvão a céu aberto em Eldorado do Sul (RS), próximo ao delta do Rio Jacuí. Ele, que também é um dos coordenadores do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, deixou claro que as famílias que vivem no local e a comunidade indígena é veementemente contra a instalação do empreendimento.

“Matas já não têm mais, sobrou só o carvão e agora os juruás (brancos) vão estragar a terra. Não é dinheiro que traz alegria e paz”, critica Cláudio. Ele contou que a aldeia onde vivem atualmente é uma conquista recente, da época do governo Tarso, e que a presença dos guaranis tem recuperado a mata nativa e preservado uma nascente de água na localidade. Um trabalho de cerca de oito anos sobre uma terra que era uma plantação de eucaliptos.

“Decidimos que não aceitamos essa empresa se instalando em Eldorado, porque vai trazer muitos problemas de saúde e no ar também. E a gente não vai ter mais sossego na comunidade porque, por 24 horas, o maquinário vai estar trabalhando perto de nós”, explica. “Estamos preocupados não só pelo guarani, pelos indígenas, mas pela população toda que vai sofrer com isso”.

Já o cacique Leonardo Barbosa, da retomada de território guarani de Terra de Areia, relatou o processo de luta do povo guarani. Nos últimos anos, o movimento de retomada vem crescendo entre os indígenas no Sul do país, como uma forma de recuperar áreas ancestrais para poder praticar seu modo de vida tradicional, que necessita da natureza para ser completo. “A gente nunca vai desistir, nossa coragem é maior que nossa preocupação, é momento de se unir para continuar de cabeça erguida”, disse.

Novo Código Ambiental agrava caos ambiental

Na mesa, Fernanda Pegorini, Leonardo Pillon, Ana Guimarães e Demétrio Guadagnin

A segunda mesa do encontro teve como temática as mudanças climáticas e o novo Código Ambiental do Rio Grande do Sul, projeto de autoria do governo Eduardo Leite (PSDB) sancionado no início de 2020. Procurou trazer um olhar técnico a partir das abordagens científica, jurídica e da experiência popular. Foi mediada por Ana Guimarães, representando a Frente pelo Clima.

O professor de ecologia da UFRGS Demétrio Guadagnin iniciou com uma apresentação crítica dos principais aspectos do novo código a partir do viés da ecologia. Na sua avaliação, o texto contém uma série de “imprecisões, lacunas, ranços e anacronismos”, muitos deles presentes já no código anterior, agora piorado. “Traz uma séria de políticas com uma visão muito limitada, que não dá conta do que precisamos para enfrentar os desafios da mudança climática”, avalia.

“O principal problema é o capítulo do licenciamento, a flexibilização”, destaca. Com a criação da Licença Ambiental por Compromisso, os empreendedores passam a receber autorização para iniciar um negócio em até 24 horas, mediante assinatura de um termo em que se compromete a respeitar a legislação. Antes, havia a necessidade de licenciamento prévio, com fiscalização desde a fase do projeto até a operação das atividades.

Em seguida, apresentou dados sobre as mudanças climáticas já diagnosticadas e os preocupantes cenários para o futuro. “A mudança climática não é paranoia do ambientalismo, é real e muito grave”, afirma. Ao mostrar que 10% dos mais ricos do mundo emitem 49% de dióxido de carbono, enquanto 50% da população é responsável por apenas 10% das emissões, o professor destaca que “todos somos culpados, mas a culpa é proporcional à grana que cada um tem”.

“É preciso uma mudança de paradigmas, a forma como entendemos o tema”, disse Guadagnin. Ele aponta a necessidade de repensar o que se entende por desenvolvimento, praticando inclusive o decrescimento econômico. Além disso, unidade e resistência. “Há uma guerra de discursos, temos que entrar em todos os grupos de Whatsapp, Instagram, todas as discussões. É a hora de disputar e não se preocupar em propor soluções, na minha opinião. Estamos em um momento anterior que é o de minar as convicções, colocar a dúvida”, conclui.

Leonardo Ferreira Pillon, advogado e membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares-RS, fez uma análise jurídica do que ele chamou de “código de sabotagem ambiental, que sabota a natureza, os povos tradicionais, as futuras gerações, o desenvolvimento sustentável e as normas jurídicas sobre mudança climática”. Destacou a forma apressada com que foi construído, em regime de urgência, sem debates com a sociedade e sem passar por comissões e conselhos.

“O projeto aprovado expõe um conflito socioambiental, com agroquímicas e mineradoras de um lado e as próprias normas de mudança climática de outro, entre corporações e seres vivos”, avalia. Traz mudanças desestruturantes, como alteração da função de fiscalização para apenas orientar, evitando multas a quem agride o meio ambiente, ingerência política de órgãos de controle e desregulamentação. Ainda permite o desmatamento do Bioma Pampa para cultivo agrícola, em especial para o avanço da soja transgênica.

Ele destacou ainda que as mudanças na legislação beneficiam projetos em andamento, como é o caso da Mina Guaíba e dos outros projetos de megamineração que estão tramitando no Estado. “Nos resta fazer uma representação de inconstitucionalidade, focando na questão climática, além de superar essa ruptura entre ser humano e natureza”, arremata.

Em seguida, Fernanda Pegorini, que faz parte do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e do Comitê de Combate à Megamineração, destacou a participação do movimento de moradia na luta contra a Mina Guaíba e na causa ambiental. “A entrada do movimento se deu quando um companheiro de Eldorado veio pedir socorro, no enfrentamento de uma questão muito cara para nós que são as remoções”, conta.

Nessa luta, ela aponta a necessidade de uma tática jurídica mais ampla e de uma tática institucional. “Precisamos estabelecer uma relação com o parlamento pelos movimentos sociais e entidades ambientalistas, com um objetivo muito claro. A gente vê que o parlamento serve aos interesses econômicos, com uma política de apropriação ilegítima e ilegal dos nossos recursos naturais e superexploração do nosso povo. Isso tem que ser exposto e combatido”, disse, reafirmando a forma escandalosa como foi aprovado o novo código ambiental.

A organização do processo passa por uma radicalização da democracia para conter esse avanço, que é uma face do fascismo, avalia Fernanda. “Precisamos pensar isso como resgate da soberania. Para além de desenvolver tática institucional e jurídicas, as populações atingidas precisam voltar a ser o centro de decisão, ter poder de decisão. Essas populações são capazes de fazer muito melhor do que nós porque elas têm essa vivência de resistência e enfrentamento há muito tempo”, conclui.

Atingidos com a voz

Na mesa, Paiakan, Soraia Colares, Michele Martins e Sirlei de Souza

Por fim, montou-se uma mesa com representantes de comunidades atingidas pela Mina Guaíba, sob coordenação de Michele Martins, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM). Moradora do Guaíba City, condomínio rural com cerca de 200 famílias, Sirlei de Souza apresentou um relato sobre o processo de desocupação, criticando o desrespeito às pessoas que vivem no local, o projeto cheio de imprecisões e ilegalidades e os inúmeros prejuízos ambientais e sociais. “O pó das queimadas da Austrália chegou aqui no RS nos últimos dias, mas a Copelmi quer nos fazer acreditar que o pó da mineração, que faz mal à saúde, não vai chegar nas cidades vizinhas”, critica.

Uma das lideranças do Assentamento Apolônio de Carvalho, Marcelo Lucas da Silva, mais conhecido como Paiakan, relembrou que o Estado é uma área historicamente marcada por conflitos e destacou a importância do debate coletivo para as pequenas conquistas alcançadas até agora na luta contra a Mina Guaíba. Destacou que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) está atento às mudanças climáticas e trabalha nesse sentido. “Vamos plantar 100 milhões de árvores no Brasil. Aqui no RS, 10 milhões. Mas precisamos do conjunto de entidades para isso”, provoca.

Paiakan apontou que o discurso de que a mineração vai criar emprego é uma afirmação questionável. “A Aracruz Celulose prometeu com seu deserto verde que duplicando a celulose teríamos geração de emprego. Mas diminuiu, porque uma turma que cortava o mato empregava 80 pessoas, mas hoje uma máquina faz isso sozinha”, exemplifica. “A mineração no RS vai criar desemprego, vai terminar com quem cria ovelha, com o arroz ecológico”, conclui.

A situação da luta contra a mineração no sul do Estado foi trazida pela médica Soraia Colares, integrante da União pela Preservação do Rio Camaquã. A Nexa Resources, a Votorantim e lamgold se esforçam para implantar uma mina de cobre, chumbo, zinco e outros metais em Caçapava do Sul. Ela chamou a atenção para o grave impacto do chumbo na saúde, “um tipo de mina que vem sendo fechada em todo o mundo”, destacando que o empreendimento pretende se instalar no alto do Rio Camaquã, região de nascentes, a partir de onde o rio serve a 28 cidades.

Sobre a Mina Guaíba, ela destacou que o problema não é só das comunidades diretamente atingidas, mas de toda a região metropolitana, com o material em suspensão proveniente da atividade. “O material particulado, principalmente o PM2,5, pode se depositar no pulmão, e os abaixo de 2,5 vão pra circulação. Podem dar AVC, infarto, câncer e doenças mentais”, explica a médica. “Essa Mina Guaíba tem o direito de atingir 4,5 milhões de pessoas com particulado, com chuva ácida?”, questiona, afirmando que só a união, o conhecimento e a comprovação do risco vai fazer com que a situação mude.

Ao final, Gabriela Cunha somou-se à mesa 

Encerrando o debate, Gabriela Cunha, da Marcha Mundial das Mulheres, relatou sua participação na Cúpula dos Povos, realizada em dezembro de 2019, em Santiago do Chile. O evento fez contraponto à Conferência da ONU (COP 25), que também seria no Chile, mas foi transferida para Madrid, na Espanha, devido aos protestos que tomaram conta do país latino-americano. Sua fala apresentou o protagonismo das mulheres na luta contra o poder das transnacionais e na geração de alternativas coletivas.

Edição: Katia Marko