Rio Grande do Sul

Coluna

O que eu quero que meus meninos saibam sobre ser mulher

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Mães e Pais pela Democracia defende uma educação inclusiva, crítica, ética e centrada nos direitos humanos - Foto: Divulgação
No RS, em janeiro de 2020, houve um aumento de 300% dos feminicídios

Tenho refletido bastante sobre os filhos que quero deixar para a sociedade e sobre o modelo de sociedade que quero lutar - por eles e para eles, sabedora que a educação tem mais potência de transformação pelo exemplo no cotidiano. Ensino para eles que tudo é ideologia e política – e o que se consome, o trabalho doméstico e a linguagem também estruturam as nossas emoções, as nossas relações com o outro e tem potencial de transformação da sociedade. As minhas posições são feministas e vou explicar.

Desde pequena, assim que conheci de perto a violência doméstica e as injustiças que a minha mãe e algumas mães de amigas minhas passavam, mobilizei-me para apoiar e articular meninas e mulheres para uma vida de amor, autocuidado e liberdade. Sempre fiz isso através de grupos na escola, no CTG e na igreja. Tenho refletido muito sobre esses momentos desde o último encontro que tive com meu pai no lar de idosos que ele reside, na semana passada, pois ele me contou que tinha participado de uma palestra lá sobre o empoderamento da mulher. Ele disse que respeitosamente falou para a palestrante que a filha dele era feminista. “Filha, não falei nem bem nem mal de ti, mas dei a minha opinião: eu acho que hoje as mulheres querem ser mais que os homens”, disse ele para mim. Eu olhei bem no fundo dos olhos do meu pai e percebi que nem ele acreditava naquilo que ele estava me falando, porque na frente dele tinha eu, sua filha, alguém que ele conhece, critica, mas admira por ser “independente” e “não passar por cima de ninguém”. Mas, afinal, por que no senso comum as pessoas assim como o meu pai ainda acham que feminismo é o contrário de machismo?

Curioso que meu filho mais velho Guilherme ficou um ano inteiro insistindo nisso e testando a minha capacidade de argumentação e paciência. Até que ele descobriu que “femismo” seria o contrário de machismo e que não seria esse o posicionamento que eu defendia, sendo que o erro era o entendimento de feminismo - ancorado em piadas machistas e misóginas que apareciam nos vídeos de alguns youtubers que ele acompanha, construindo realidades através de caricaturas de mulheres. Ocupamos boa parte do nosso tempo juntos falando sobre isso e certamente foram os nossos melhores diálogos, porém penso que nada o convence mais do que as minhas ações diárias.

Em casa ensino para os meus filhos que ninguém está livre de não fazer os trabalhos domésticos e de cuidados, de olhar em relação aos demais - com empatia e tolerância. Ninguém pode ficar sobrecarregado e que devemos reconhecer e falar sobre os nossos sentimentos. Percebo que essas duas dimensões são essenciais para uma vida saudável para homens e mulheres, prezando o bem viver a partir da interdependência, como defendem as feministas críticas. Há uma geração de meninos que está recebendo uma formação que valoriza a distribuição de tarefas, reconhece a necessidade da igualdade de gênero e que não tolera e sabe reconhecer a violência contra a mulher, a exemplo dos meus guris.

Crio os meus filhos Guilherme e Theo para que eles saibam que as mulheres sofrem violência dentro de casa de várias formas, muitas delas muito sutis, mas doloridas, no transporte público, nas ruas, nas redes sociais e no trabalho, e que a roupa que uma mulher usa não induz ninguém a assediá-la. Tento educar crianças feministas, como nos diz a Chimamanda Adichie, a partir de duas premissas: “eu (como mulher) tenho valor” e só vale para mim o que vale para o meu parceiro e vice-versa. A ideia de que “os homens são assim” e que os padrões para eles são mais baixos me perturba profundamente desde que percebi a criação desigual que recebi em comparação com a dos meus irmãos homens mais velhos. Meus filhos podem ser muito mais!

Eu os educo para o feminismo quando experimento a completude do meu trabalho e militância mesmo com poucas horas de sono. Fico feliz por saber que a minha capacidade de negociar tem feito a diferença nos espaços de decisão pública. Levo meu bebê para os espaços públicos, mesmo sem trocador ou sem uma sala de apoio à amamentação, como na Câmara de Vereadores de Porto Alegre e na Assembleia Legislativa do RS. Mas não faço nada disso sozinha. Peço ajuda o tempo todo para todo mundo. Isso de ser supermulher passa longe do que eu quero ser. Eu tento cuidar de mim seja com um sapato confortável, seja com uma massagem. E só consigo fazer isso porque o pai dos meus filhos busca dividir a criação dos filhos comigo e discutimos esse tema abertamente. Mas sempre há muita discussão sobre o equilíbrio das atividades de todos na nossa casa. Saudável! A paz não é a ausência de conflito.

Confesso que já ouvi de pessoas queridas nossas que disseram para o meu filho Guilherme a seguinte expressão: “segure as suas cabritas que o meu bode está solto”. Foi necessário uma longa conversa sobre isso com ele até que dias destes eu falei que quando ele tivesse “namoradas ele seria um ótimo namorado” e ele me corrigiu dizendo que, ao partir do plural “namoradas”, eu estava tendo um discurso machista, na opinião dele. Sim, ele tem razão, pois se ele fosse menina talvez colocássemos a frase de outra forma. Então, não nos serve. Convivo diariamente com pessoas que atribuem meus sucessos profissionais e de militância ao meu brilhante marido. Não é ironia. Edu é mesmo muito bom no que ele faz profissionalmente. Todavia, acharem que ele está por trás de mim ou de que “ele me deixa brilhar” é um pensamento mentiroso, machista e que me reduz. Não aceito!

Por conta desses preconceitos todos, milito e sou presidenta da Associação Mães e Pais pela Democracia, o tsunami contra o furacão antidemocrático que ronda nossas crianças nas escolas em Porto Alegre. Nossa aposta é que os nossos filhos e filhas resistirão à ideologia antigênero com muito mais consistência! Com uma mãe militante que sonha em deixar o maior legado de todos para os filhos, a democracia, eu grito e resisto por uma educação pública, gratuita, inclusiva, de qualidade e que promova a laicidade do Estado e seja centrada nos direitos humanos, como prevê a nossa Constituição Federal de 1988.

Há que se atribuir esse conservadorismo de extrema direita na educação ao Movimento Escola Sem Partido, a quem nos contrapomos, surgido também no contexto de debate do Plano Nacional de Educação - a partir de 2014 - quando se considerou questões de gênero e sexualidade como centrais na educação. O Escola Sem Partido (ESP) defende uma política antigênero que opta pela censura e pelo silenciamento de um pensamento chamado de “esquerdista” nas escolas, sobretudo privadas, e nas universidade e institutos federais. Além disso, essas ideias vem sendo disseminadas através de dezenas de leis municipais e estaduais no país. Eles não querem trazer informações sobre a agenda feminista e de redução das desigualdades.

As nuances do ESP já se traduzem em políticas públicas e diretrizes estatais no desgoverno Bolsonaro tais como: abstinência sexual na adolescência para evitar gravidez e doenças sexuais, canal de denúncia contra professores chamados de doutrinadores, campanhas de silêncio frente aos feminicídios e de conceito como “menina veste rosa e menino veste azul”. Sem falar na notícia de hoje, que a Ministra Damares quer que se distingua o sexo não consentido de estupro para o maior controle dos corpos das mulheres.

Os feminicídios chegaram no ápice em 2019, 1314 casos, conforme o Monitor da Violência no G1, incluindo o aumento das situações com uso de arma de fogo – mérito da política de flexibilização de posse e porte de armas do atual presidente. No RS, em janeiro de 2020, houve um aumento de 300% dos feminicídios. Se a reflexão desse problema não for objeto das aulas do meu filho, eu não vejo sentido dele estar na escola e nem ele. É igualmente relevante o debate sobre racismo e violência policial (que levou a uma briga na maior escola de Porto Alegre que viralizou na internet e que teve como punição a expulsão de alunos e a demissão de um professor) ou alguém acha que não?! Ah, sim, os membros do Escola Sem Partido que foram protestar na frente dessa escola chamando o professor de doutrinador e “marxista” em virtude do tema debatido. Direitos humanos, para quem não sabe, não são de direita ou de esquerda. São de todos!

Por essa razão, estaremos defendendo sempre os professores, as professoras e os nossos filhos e filhas pelo direito à educação plural, crítica e ética. Pela dignidade de todas as pessoas, em especial, jovens, negros, negras e pobres!!! Quero mesmo que meus filhos façam a revolução criando outras formas de superar os abismos sociais vexatórios que iniciam dentro de casa e que insistem em se aprofundar na sociedade nestes tempos obscuros e autoritários. Seremos resistência! Somos mulheres e mães pela democracia e não temos medo porque estamos muito bem acompanhadas e irmanadas por um mundo feminista!

Edição: Marcelo Ferreira