História

Hong Kong: de colônia britânica a ponta de lança contra a República Popular da China

A história da ilha remonta ao tráfico do ópio, a governos autocráticos e colonialistas e à miséria da população asiática

Brasil de Fato | Macau (China) |
hong kong poluição
Um dos centros financeiros mundiais, Hong Kong tem seu desenvolvimento industrial marcado por uma política de baixos salários e de extensas jornadas de trabalho - Robyn Beck/AFP

Hong Kong fica a leste do estuário do Rio das Pérolas, na província de Guangdong, no Sul da China. O território é um dos mais densamente povoados do mundo, com uma população de quase 7.5 milhões de habitantes vivendo numa área de 1.104 km2: possui, deste modo, uma densidade de 6.300 pessoas por Km2 (World Population Review, 2019).

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A 1º de julho de 1997, Hong Kong deixou de estar sob a jurisdição britânica e passou para a jurisdição chinesa, tornando-se numa Região Administrativa Especial (RAEHK) da República Popular da China (RPC). No ato oficial de transferência de soberania, o Chefe do Executivo do novo Governo de Hong Kong, Tung Chee Hwa, formula publicamente a política de um país, dois sistemas, defendida em 1978, por Deng Xiaoping, na 13ª sessão do 11° Comité  Central do Partido Comunista Chinês (PCC). Garantia-se, deste modo, a perduração do modo de organização capitalista neste território asiático, pelo que, segundo as autoridades da RPC, passariam a coexistir no território chinês o socialismo com características chinesas e o capitalismo.

Porém, uma vez feita a transferência de soberania, os britânicos deixariam naquela que foi uma colônia sua desde 1842, organizações e mecanismos que lhes permitiriam manter e estender o apoio e suporte ideológico-financeiro a uma guerra estratégica que, até hoje, se trava contra a RPC.

Com efeito, Hong Kong tem tido, desde 1997, períodos de contestação social, os quais são apresentados pelos grandes grupos da mídia hegemônica como uma luta dos hongkongueses pela democracia, contra a opressão chinesa.  Tal apresentação dos factos constitui, no entanto, uma manipulação da realidade, uma vez que, por detrás das mobilizações em Hong Kong, se encontram estruturas organizadas por centros imperialistas externos, os quais têm como objetivo a desestabilização da China, a partir do seu próprio interior.

Nessas manifestações foram surgindo, com cada vez maior frequência, bandeiras britânicas e estadunidenses, os primeiros aparecendo como os promotores de uma democracia que, desde 1997, dizem ter sido abandonada. 
Será, contudo, que esta imagem dos britânicos corresponde à realidade histórica?

::Leia também: Macau e Hong Kong: de colônias europeias a regiões capitalistas dentro da China::

A Guerra do Ópio: quando o capital vindo do Ocidente entra na China

No século 19, a Grã-Bretanha despoletou duas guerras do ópio contra a China. O conflito tinha um objetivo político muito preciso: enfraquecer militar e economicamente a China, forçando-a a abrir-se às potências estrangeiras e a tornar-se dependente do comércio do ópio.

A história do comércio e do consumo do ópio, na China, remonta à Dinastia Tang (618-907), quando mercadores árabes o introduzem no território. É, então, utilizado, sobretudo, para fins medicinais, apesar de as suas propriedades narcóticas serem já conhecidas. Mais tarde, no final do século 16, também os portugueses comercializam ópio, o qual entra no território chinês através de Macau. Contudo, é no início da dinastia Qing (1644-1911) que os habitantes das zonas costeiras (nomeadamente de Fujian e de Guangdong) vão aperfeiçoando a forma de o consumir, fazendo com que, gradualmente, o consumo de ópio se estenda a todo o território chinês. Foi, aliás, devido ao seu crescente consumo, que a Corte Imperial chinesa interdita, em 1729, o comércio do ópio, excepto para fins medicinais. 
Estamos, já então, no século 18, num momento em que os Estados colonialistas europeus, onde o modo de organização capitalista se impunha, olham com uma ganância crescente para o vasto território chinês e para as suas evidentes possibilidades comerciais e geoestratégicas, assim como para as receitas que poderiam advir do tráfico do ópio. 

O cultivo de papoila (cultivada na Pérsia e na Turquia) é introduzido em Bengala, no século 18, pela Companhia Britânica das Índias Orientais. É, assim, esta Companhia que obtém o monopólio comercial do ópio, por parte do Império britânico, nesta parte do mundo (sobretudo graças ao facto de ter financiado a conquista das Índias pela coroa britânica), tornando-se o comércio do ópio, a partir de 1813, numa fonte de receitas fundamental para o Império britânico. O início da revolução industrial, no final do século 18, vai, contudo, fazer com que industriais de Manchester, de Birmingham, de Midlands e de Yorkshire se organizem para exigir o livre comércio e, assim, conquistar novos mercados e rentabilizar investimentos. Isto faria com que, gradualmente, a Companhia Britânica das Índias Orientais se visse obrigada a abandonar o seu monopólio (o que, de facto, se concretizaria em 1833) e assistisse ao desenvolvimento dos Country Trade. Reunindo empresários privados anglo-saxões estabelecidos na Índia, os Country Trade permitiam a comunicação da rede comercial da Companhia das Índias com os canais de comércio na Índia e com os traficantes britânicos de ópio, estabelecidos em Cantão.

É, assim, a partir deste momento, que o ópio entra, de facto, de forma massiva, no território chinês, provocando graves problemas de saúde pública e causando um profundo desgaste à economia do país. A Corte Imperial Qing decide, então, banir, definitivamente, o ópio da China.

Em 1839, a China confisca mais de 20.000 caixas de ópio a traficantes, sediados em Cantão, e exige aos mercadores estrangeiros que assinem um documento no qual renunciem ao tráfico do ópio. Na sua maioria britânicos, os traficantes exigiram, então, que a China lhes pagasse o valor total das suas mercadorias, o que o Império asiático recusou fazer.

Perante a previsão de perdas de importantes fontes de receita que o ópio permitia arrecadar (e que eram incomparavelmente superiores àquelas que as autoridades portuguesas, instaladas em Macau, alcançavam), a Grã-Bretanha desencadeia uma resposta militar à proibição lançada pela Corte Imperial e despoleta a primeira Guerra do Ópio. O Império britânico exige obter um pedido de desculpas da China, uma compensação pelo ópio confiscado e garantias para a segurança dos comerciantes britânicos, as quais seriam materializadas pela posse de uma ilha. Um dos primeiros atos de guerra britânicos constou, aliás, da ocupação de Hong Kong, uma ilha pouco habitada do sudeste chinês.

Depois de três anos de uma guerra em que sai perdedora, a China depara-se com uma situação econômica bastante frágil. Para terminar com o conflito armado, a China vê-se obrigada a assinar, em 1842, o Tratado de Nanking, no qual consta a entrega da ilha de Hong Kong aos britânicos, assim como uma compensação de guerra de US$ 21 milhões, a abertura de cinco portos ao comércio (Cantão, Fuzhou, Xiamen, Ningbo e Shanghai) e a limitação das tarifas alfandegárias. Ainda que o tratado nada referisse em relação ao ópio, o seu comércio era, de fait, autorizado. A ilha de Hong Kong foi, desde logo, declarada como um porto livre, um estatuto que daria início ao crescimento econômico posterior. No topo da administração do novo território colonial encontrava-se o Governador, autoridade máxima escolhida por Londres.

As instituições religiosas cristãs logo se aproveitaram da nova colônia britânica e missionários cristãos (anglicanos, congregacionistas e metodistas) instalaram-se, confortavelmente, no novo território dominado por traficantes e pelo maior Império de então. Hong Kong tornar-se-ia, assim, na base asiática mais importante para instituições católicas e protestantes.

Depois do Tratado de Nanking, os britânicos continuaram a pressionar a China no sentido de esta legalizar o ópio e recusavam cessar a sua importação. É, assim, lançada uma segunda guerra, pelo Reino Unido e pela França, em 1856, finda a qual, em 1860, é assinado o Tratado de Pequim. Legaliza-se, a partir de então, o comércio do ópio e os chineses vêem-se obrigados a abrir novos portos ao comércio com o estrangeiro e a entregar um novo território aos britânicos: a ilha de Kowloon.

Em 1880, o tráfico do ópio representava 39% das importações chinesas, sendo que, em 1905, se estimava que 10% dos homens adultos chineses fossem opiómanos. Em Hong Kong, em 1918, 46.5% das receitas governamentais advinham do comércio de ópio, ao mesmo tempo que uma crescente população chinesa, no território, se tornava, também ela, dependente daquele narcótico. Vale a pena lembrar que seria apenas depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945, que o Império britânico tornaria ilegal o ópio, em Hong Kong.

Em 1898, os Novos Territórios são cedidos, por aluguer, à Grã-Bretanha, por um período de 99 anos, juntando-se aos territórios coloniais de Hong Kong e de Kowloon.


Fumadores de ópio na China, em 1858. / Domínio Público

As leis discriminatórios em Hong Kong e a insalubridade de uma cidade asiática

Desde 1911 que a China exige a revogação dos tratados desiguais que se viu forçada a assinar; contudo, não obteve sucesso¹. Entretanto, o Império britânico impunha a sua lei nos territórios chineses que, em 1842, 1860 e 1898 se haviam tornado numa colônia.

Ao longo do século 20, Hong Kong vai-se tornar num paraíso para os bancos, com um governo autocrático e colonialista. Esta situação tinha, no entanto, o reverso da medalha, com a população asiática a viver, na sua maioria, em condições de miséria e de precariedade extremas.

Com efeito, logo no início da colonização de Hong Kong, os britânicos promulgaram uma legislação que, na prática, criava uma lei para europeus e outra para chineses. Foram, assim, aprovadas leis para garantir que nenhum chinês moraria nas áreas mais desejáveis ​​de Hong Kong, as quais os britânicos pretendiam preservar como exclusivas. Num território onde a grande maioria da população falava, sobretudo, cantonês, o inglês constituía, no entanto, a língua oficial, ainda que incompreendida pela grande maioria da população. O chinês, aliás, só se tornaria língua oficial, conjuntamente com o inglês, num estádio avançado do colonialismo, em 1974.

Relatórios oficiais do final do século 19 apresentam-nos uma cidade sem condições sanitárias, sem saneamento básico, com infraestruturas precárias e onde as famílias se concentravam em espaços diminutos. Em 1860 e 1861, o cirurgião colonial descrevia o horror das condições sanitárias em que viviam os chineses, em Hong Kong, assim como as prisões sobrelotadas da colônia.

Hong Kong tornara-se num território de consumo e de comércio de ópio, de salas de jogo (o jogo é legalizado em 1867) e de traficantes, com uma vasta população a viver em condições insalubres.

Entretanto, outro tráfico prosperava neste território colonial: o tráfico de mulheres e de crianças. 

Mulheres chinesas eram raptadas, sobretudo, de Cantão, e trazidas para Hong Kong, sendo obrigadas a prostituir-se nesta colônia, ou em outros territórios fora de Hong Kong. Para muitos outros habitantes chineses de Hong Kong, as extremas condições de miséria em que viviam obrigavam-nos a vender as próprias filhas. As mui tsai tornavam-se, assim, propriedade de chineses abastados e, sobretudo, de britânicos, num processo de venda de seres humanos que apenas tem paralelo com o tráfico de escravos.

O fim deste tráfico apenas seria legislado em 1923, ainda que todas as mui tsai que tivessem sido compradas, até essa data, continuassem propriedade daqueles que as compraram.

Mulheres e crianças tornavam-se, deste modo, nos novos escravos do Império britânico.

A escravatura escamoteada estendia-se, ainda, a outros âmbitos, ainda que essa designação não fosse arvorada. Dois anos após o término da guerra na África do Sul (Guerra Anglo-Boer, entre 1898 e 1902), é necessária uma numerosa mão-de-obra para as minas de diamantes e de ouro sul-africanas. Parte da mão-de-obra necessária foi enviada a partir do porto livre de Hong Kong, com navios transportando milhares de chineses. Estima-se que, entre 1904 e 1910, mais de 63 mil chineses tivessem sido enviados para as minas sul-africanas.

Neste contexto de tráfico de seres humanos, dependência de ópio, tráfico de ópio, numa cidade insalubre (que daria, aliás, origem a uma epidemia de peste bubônica, em 1894, e onde, posteriormente, os excrementos humanos se tornariam fonte de comércio), onde um apartheid legislativo separava os bairros dos brancos europeus da restante população asiática (em 1904, um ato legislativo proibia os chineses de possuir terra ou de residir no Peak) e onde chineses sofriam castigos físicos (como o açoitamento), permitidos pela lei, assistimos à conformação de instituições que permitem a consolidação do capital financeiro e que tornariam Hong Kong, no início do século 20, num dos centros financeiros mundiais.

Um centro financeiro que prosperaria, mas onde a pena de morte apenas seria abolida em 1993.

Hong Kong era, aliás, a única colônia britânica que tinha enforcamentos públicos. Antes da sua abolição, a pena de morte aplicava-se aos crimes de assassinato, traição e pirataria com violência.

O regime legislativo de apartheid que vigorou durante o século 19, e parte do século 20, daria uma posição privilegiada a europeus, sobretudo a expatriados britânicos residindo no território. As posições mais importantes no governo seriam, aliás, até 1997, ocupadas por britânicos. Lembremos, por exemplo, que, em 1994, dos dez juízes do mais importante Tribunal de Hong Kong – Court of Appeal –, apenas um deles não era britânico. Vários relatórios elaborados sobre a administração pública, em Hong Kong, corroboram, aliás, o facto de os expatriados serem promovidos para as mais importantes tarefas e cargos do governo: “Os europeus recebiam moradia gratuita do governo ou um subsídio de moradia, obtinham a reforma aos sessenta anos de idade, sendo que vinte por cento do seu salário anual incluía juros que eram pagos na reforma, recebiam viagens gratuitas (até seis pessoas) de volta à Europa, de dois em dois anos, e obtinham um pagamento parcial das mensalidades pagas para as crianças frequentarem escolas particulares, na Europa” (Klein, 1995).

E não é preciso recuar muito no tempo para assistir à repressão de todos aqueles que lutaram pelo reconhecimento do chinês, como língua oficial.

Em 1972, a polícia de Hong Kong forçou a entrada no local de um jornal estudantil e prendeu todos aqueles que se preparavam para organizar um protesto contra a secundarização a que estava votada a língua chinesa, no território. 

A prosperidade à custa de uma feroz exploração da mão-de-obra chinesa e de uma hierarquização de direitos de cidadania

Em 1964, em plena Guerra do Vietnã, a China protesta contra a presença de navios de guerra estadunidenses no porto de Hong Kong. Numa nota de 15 de maio de 1967, a China denuncia “o complot do governo britânico que colabora com o imperialismo americano contra a China” e que “continua a oferecer Hong Kong aos EUA como uma base para a sua agressão contra o Vietnã” (apud Fischer, 1968, p. 317).

Três anos depois, em maio de 1967, sucedem-se várias lutas operárias, enquadradas pelo Hong Kong Federation of Trade Unions (união de sindicatos próxima do PCC, que se posicionava contra o domínio colonial), fortemente reprimidas pelo governo colonial, que deixou um legado de 51 mortos. Sucedem-se, neste contexto, incidentes na fronteira, protestos e um ultimato de Beijing. Um relatório do PCC, desse ano, afirmava o seguinte: “O imperialismo britânico chegou à China através de navios piratas, provocou a criminosa guerra do ópio, massacrou numerosos chineses e ocupou o território chinês de Hong Kong. Mais tarde, apropriou-se do território chinês de Kowloon e dos Novos Territórios. Esta é uma enorme dívida de sangue que os britânicos têm para com os chineses” (apud Klein, 1995, p. 241).

Com efeito, o desenvolvimento industrial que se tinha verificado em Hong Kong, na segunda metade do século 20, baseou-se numa política de baixos salários e de extensas jornadas de trabalho. 

Em 1959, 14 anos depois da Segunda Guerra Mundial, a legislação colonial aplicada a Hong Kong afirmava que o trabalho das mulheres e dos jovens, com menos de 18 anos, poderia estender-se até 10h por dia e 48h por semana. Paralelamente, não legislava nenhuma pausa semanal obrigatória, nem limitava a duração de trabalho dos homens com mais de 18 anos. O trabalho das crianças era proibido, apenas, para os menores de 14 anos. Ainda assim, em 1967, 17.000 crianças abandonaram a escola para integrar o mercado de trabalho. Segundo um deputado trabalhista britânico, “as condições de trabalho [em 1967] são de tal forma inimagináveis que elas se encontram em contradição com os princípios que levaram o governo trabalhista ao poder” (apud Fischer, 1968, p. 326). Ora, é neste contexto de exploração feroz que os trabalhadores, mormente operários, se revoltam, obrigando o governo colonial britânico a ir ao encontro de algumas das suas reivindicações.

Para além das reivindicações laborais, havia uma reivindicação da população de Hong Kong que nunca seria acolhida pelo poder colonial: a plena cidadania britânica.

Com efeito, os habitantes de Hong Kong eram considerados sujeitos da Coroa britânica, contudo não gozavam de todos os direitos, nem da completa cidadania de que gozavam os britânicos do Reino Unido.

Em 1948, num momento em que as colônias, no plano mundial, progressivamente, adquiriam a sua autonomia, o Reino Unido decide que os membros da Commonwealth, ainda que pudessem permitir uma cidadania própria a cada domínio, guardariam o estatuto comum imperial de “sujeitos britânicos”. O colonialismo escondia-se, deste modo, por detrás de um neocolonialismo difuso, mascarado sob o desígnio de “cidadão da Commonwealth” (CUKC – Citizen of the United Kingdom and Colonies). Esta passa, então, a ser a designação para os habitantes asiáticos, nascidos em Hong Kong.

Porém, se, até 1962, ainda que gozando de direitos distintos dos cidadãos de pleno direito britânico, os CUKC poderiam entrar e sair do Reino Unido, sem restrição, esta situação altera-se a partir de 1962, quando os CUKC (e, portanto, os CUKC de Hong Hong) passam a ser sujeitos a restrições de movimento e de estadia.

Em 1981, o Reino Unido cria novas categorias de cidadania. A partir de então, num revés linguístico que pretendia escamotear, na realidade, a perduração de uma situação colonial, os britânicos substituem a denominação de “territórios coloniais britânicos” por “territórios dependentes britânicos”. O estatuto de cidadania CUKC desaparece e é substituído por novas categorias. Para além da categoria de cidadão britânico (apenas para residentes do Reino Unido e de dependências da Coroa britânica), estabelecia-se o estatuto BDTC (Cidadão Britânico dos Territórios Tependentes) e o estatuto BOC (Cidadão Britânico Ultramarino). Esta última categoria constituía uma classe de nacionalidade não hereditária para todos aqueles que não poderiam aceder nem ao estatuto de cidadão britânico, nem ao estatuto de BDTC. A lei estabeleceu, ainda, que todos os CUKC de Hong Kong e todos aqueles que nascessem no território, depois de 1983, tornar-se-iam BDTC. Porém, uma vez passada a soberania para a China, os BDTC perderiam este estatuto e passariam a ser, apenas, cidadãos chineses.

Assim sendo, em 1985, o Reino Unido cria uma categoria de cidadania adicional – BN(O) (Nacional Britânico Ultramarino) – que se aplicava, apenas, a Hong Kong, à qual poderiam aceder os BDTC. Esta categoria estender-se-ia para além de 1997, contudo, continuava a não permitir aos seus detentores os direitos plenos de cidadania de que gozavam os cidadãos britânicos, não sendo, tampouco, hereditária.

Assim sendo, os BN(O) não possuíam/possuem o direito de viver ou de trabalhar no Reino Unido e não são considerados cidadãos britânicos pela União Europeia. Atualmente, estima-se que 170.000 hongkonguenses possuam BN(O) válidos.

Não deixa, assim, de ser anacrônico, que, nas manifestações que se verificaram ao longo de 2019, se vissem frequentemente bandeiras britânicas hasteadas pelos manifestantes.

Perante as históricas desigualdades que os habitantes de Hong Kong, de origem chinesa, sofreram no território, a atitude daqueles deveria ser de repulsa e de vergonha perante a bandeira de um país que sempre os considerou como cidadãos de segunda.

Vale a pena recordar que, no século 20, houve um longo período em que, em Hong Kong, anúncios à entrada de estabelecimentos diziam: “Proibida a entrada a chineses ou a cães” (“No Chinese or dogs inside”).

A interferência e o financiamento exterior dos protestos

Hong Kong é, pois, um território que herdou o legado do remanescente imperialismo europeu. Paralelamente, este território encontrava-se numa posição privilegiada para dar apoio ao governo de Tawain, pelo que eram numerosas as organizações (sindicais, cívicas, cristãs) que, ao longo do século 20, operavam em Hong Kong, não apenas sob o controlo britânico, mas igualmente estadunidense.

Os esforços da Grã-Bretanha (coadjuvada pelos EUA) de manter influência em Hong Kong fazem-se sentir, com uma particular intensidade, pouco tempo antes da transferência da soberania.

Com efeito, após 150 anos de nomeações de altos funcionários, por Londres, para o território de Hong Kong, a Grã-Bretanha estabeleceu, pouco tempo antes da passagem de soberania, e de forma apressada, em 1991, eleições para o Legislative Council of Hong Kong (a Assembleia Legislativa do território) - ainda que a maioria continuasse a advir de nomeações. Seria a primeira vez na história colonial de Hong Kong que membros daquela Assembleia seriam eleitos de forma direta. Paralelamente, o Reino Unido estabeleceu e financiou partidos políticos, compostos por leais futuros colaboradores.

Assim sendo, milhões de dólares foram canalizados para uma rede de organizações, de partidos políticos, de órgãos de comunicação social, de organizações estudantis e juvenis e de sindicatos. Das organizações sindicais, saliente-se a criação, em 1990, do Hong Kong Christian Industrial Committee (HKCIC), uma organização parcialmente financiada e apoiada pela Igreja que, hoje, se reivindica do autodenominado campo “pró-democrata”. Aliás, o seu secretário-geral, Lee Cheuk Yan é um dos fundadores, em 2011, do Partido Trabalhista de Hong Kong.

Em 14 de maio de 2014, a Fundação Nacional dos EUA para a Democracia (National Endowment for Democracy– NED) organizou um painel de discussão realizado, em Washington DC, que contou com a presença de quatro membros que se reclamavam do campo “pró-democrata”: Martin Lee, Nathan Law (fundador do partido Demosisto, juntamente com Johua Wong), Lee Cheuk Yan e Mak Yin-Ting.

Um mês depois começavam os protestos em Hong Kong. Estas reuniões pré-protestos não parecem ser ocasionais.

Já em abril de 2014, cinco meses antes do início dos protestos "Occupy Central", também um painel de discussão fora realizado, por iniciativa do NED, em Washington DC, com membros “pró-democratas”, os quais se reuniram, igualmente, com autoridades estadunidenses.

Ora, por que razão o NED é tão influente?

O NED apresenta-se como uma “fundação privada, sem fins lucrativos, dedicada ao crescimento e fortalecimento de instituições democráticas em todo o mundo (...), incluindo partidos políticos, sindicatos, mercados livres e organizações empresariais”. Financiada, maioritariamente, pelo Congresso dos EUA, o NED desempenhou um papel importante em inúmeras operações de mudança de regime, da Líbia ao Iraque, passando pela Ucrânia e pelo Afeganistão, financiando grupos venezuelanos, kosovares ou chineses. Desde a sua fundação, em 1983, pelo Presidente Ronald Reagen, que o NED financia, na realidade, partidos da oposição, separatistas e extremistas nas áreas mais turbulentas do mundo, com o objetivo de estabelecer governos pró-EUA. 

Vale a pena acrescentar que a Hong Kong Confederation of Trade Unions recebe subsídios do NED. Em Outubro de 2014, documentos da Wikileaks revelam, aliás, que o Departamento de Estado dos EUA, através do NED, financiara o movimento “Occupy Central”.

O fato de que vários líderes dos protestos de Hong Kong, em 2019, tenham viajado para Washington DC, nem sempre simultaneamente, para participar em eventos que apoiam os protestos, ilustra os interesses externos, e os certos financiamentos, pela agitação de que Hong Kong foi alvo em 2019.

NED, Fundação Ford, Fundação Rockefeller, organizações financiadas por Soros, assim como inúmeras outras fundações corporativas e igrejas cristãs estão por detrás de uma rede que financia e organiza os protestos de Hong Kong.

Neste contexto, não é de estranhar que, na linha da frente das manifestações que se realizaram quer em 2014, quer em 2019, se encontrassem organizações cristãs. Algumas das principais faces dos jovens líderes dos movimentos de 2014 e de 2019 vêm, aliás, de escolas cristãs, mormente protestantes. Os meios de comunicação social hegemônicos não escondiam este facto, antes apresentando-o como uma vontade daquelas organizações de buscar uma (nunca definida) democracia.

Joshua Wong, a face mais conhecida dos jovens manifestantes de Hong Kong, de 2019, membro ativo do Umbrella Mouvement, em 2014, secretário-geral da organização política Demosisto e fundador do grupo de estudantes Scholarism, estudou na United Christian College, uma escola privada protestante que diz pretender “ajudar os alunos a identificar e a desenvolver as suas habilidades e talentos, dados por Deus”. Quando tinha, apenas, 18 anos a revista Time, em 2014, considerou-o o adolescente mais influente e nomeou-o para Person of the Year. Um ano depois, a revista Fortune considerou-o “um dos maiores líderes do mundo” e, em 2018, foi nomeado, juntamente com outros membros do Umbrella Mouvement, para o Prémio Nobel da Paz.

A revista Fortune é uma revista de negócios estadunidense, que, juntamente com as revistas Time, Life e Sports Illustrated, pertencia ao grupo Time Warner, o qual foi, até 2000 (momento em que o grupo foi adquirido pela AOL), o maior conglomerado de mídia do mundo. Quanto à promiscuidade das revistas Fortune e Time com a administração estadunidense, relembre-se, por exemplo, que o editor-chefe, entre 2006 e 2013, da revista Time, foi Richard Stengel, que, em 2014, foi nomeado, pelo Presidente Obama, como Sub-Secretário do Departamento de Estado do Governo, para a Diplomacia e Assuntos Públicos.

Também Wong foi convidado a Washington DC, pela subsidiária do National Endowment for Democracy (NED), a Freedom House, para receber um prêmio pelo seu papel na liderança dos protestos.

Em setembro de 2019, Nancy Pelosi dava uma conferência de imprensa, lado a lado com membros do Demosisto, como Joshua Wong e Nathan Law, dizendo que o capitólio se orgulhava de acolher os “campões da democracia e da liberdade expressão”, antecipando a aprovação, pelo Congresso estadunidense, do Hong Kong Human Rights and Democracy Act.

Não é, assim, estranho que um jovem de uma escola anglicana seja mundialmente projetado pelos mídia de maior influência no mundo.

Os protestos em Hong Kong: terrorismo financiado e democracia coxa

Aproximando-nos do final deste artigo, queremos salientar que assistimos a vários protestos que ocorreram em Hong Kong, em 2019.

E que ficamos estupefatos. Com efeito, pudemos observar a montagem de longas mesas, na rua, durante os protestos, a qual era concomitante com a chegada de dezenas e dezenas de caixas, empilhadas por detrás daquelas. Destas caixas era retirado o material que seria posto em cima das mesas, para que, quem quer que fosse, se servisse à vontade: disponibilizava-se um conjunto de artefactos necessários para fazer coktails molotov ou pequenas bombas caseiras. Estavam, assim, disponíveis, nas ruas, em plenos protestos, kits para fabricação de pequenos explosivos, máscaras de proteção, álcool, proteção plástica para os olhos, gotas de soro, luvas.

Perguntamo-nos, então: Quem pagava este material? Quem o transportava?  Quem o distribuía? 
Das vagas reivindicações que os jovens hongkonguenses levavam para as ruas, nenhuma, no entanto, tinha em consideração as reivindicações dos sectores mais empobrecidos da população, sobretudo das populações emigrantes superexploradas no território.

Em Hong Kong, trabalham, aproximadamente, 100 mil Indonésios (80% a 90% dos quais são mulheres) e 130 mil filipinos (mais de 90% são mulheres).

Ora, num território onde as mulheres filipinas e indonésias são mão-de-obra barata para trabalhar em casa de famílias dos estratos médios e altos da sociedade hongkonguense - em situações que, em muitos casos, roçam a escravatura, e em que são frequentes maus tratos e situações de subnutrição - os meninos e as meninas de Hong Kong chegavam, certamente, a suas casas, depois de um protesto no qual arvoravam bandeiras de um outro tempo, comendo o seu jantar feito pela empregada filipina ou indonésia,  tiravam as suas roupas caras, transpiradas, lavadas no dia anterior pela sua empregada filipina ou indonésia, dormiam tranquilos nas suas casas, nos seus quartos lavados pela sua empregada filipina ou indonésia, enquanto a sua empregada filipina ou indonésia terminava o seu dia de trabalho que, certamente, se iniciara há mais de 12 horas, ansiando dormir no cubículo que lhe é destinado, na casa do patrão - que é o pai, a mãe ou o pai e a mãe do menino e da menina -, empregada filipina ou indonésia para quem oito horas de sono são, certamente, um sonho.

E, no dia seguinte, preparando o pequeno-almoço para o jovem que usa a roupa que ela lavou, secou e passou, vê o jovem colocar a sua máscara preta e a sua mochila de marca às costas, dirigir-se para as ruas, ficando ela a cuidar da casa, num dos seis dias por semana que trabalha, com um salário de HK $4.630 mensais (aprox. 552 euros), numa cidade que, em 2020, foi considerada, não apenas uma das cidades mais caras do mundo (The Economist Intelligence Unit (EIU)), como também a cidade mais cara do mundo para quem trabalha no exterior (HR consultancy Mercer).

Parece, pois, que os pró-democratas de Hong Kong não são, apenas, desmemoriados, esquecendo o que foi a cruel e imperial colonização britânica, mas também fazem jus à democracia da Antiga Grécia: democracia, sim, para alguns. Os escravos, precisam-se.

Bibliografia citada:

Klein, Richard Daniel (1995). Law and Racism in an Asian Setting: An Analysis of the British Rule of Hong Kong. In: Hastings Int'l & Comp. L. Rev, v. 18, pp 223-276. 

Fischer, Georges (1968). Hong Kong. In: Revue française de science politique, n. 2, pp. 315-332.

Edição: Rodrigo Chagas