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Coluna

Losurdo e uma análise complexa e completa da História

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O teórico italiano contribui na visualização do que significou a complexa História do século vinte - Pedro Carrano
Autor resgata o impacto do colonialismo na opressão dos povos e quebra mitos sobre as revoluções

Domenico Losurdo é um autor importante na atual disputa de ideias, tanto para compreender o momento histórico imediato e, ao mesmo tempo, a disputa de imaginário e de narrativa que atravessa o século vinte.

O teórico italiano contribui na visualização do que significou a complexa História do século vinte, marcada por duas guerras mundiais, pela luta de classes e revoluções de natureza socialista. Um debate fundamental neste momento quando o revisionismo histórico se coloca como arma nas mãos dos canais de comunicação conservadores para recontar a História, recauchutar a ideia do “fantasma do comunismo”, buscar teses que se ancoram no senso comum, tal como “comunismo e nazismo foram a mesma coisa” e outras ideias do gênero.

O livro “Guerra e Revolução – O mundo após o outubro de 1917”, de Losurdo chegou até mim como presente do amigo Ricardo Gebrim. Este trabalho extenso dimensiona que o revisionismo histórico faz com haja uma associação imediata entre terrorismo e os processos revolucionários que marcaram a consolidação da burguesia e as tentativas no século vinte de transição ao socialismo. Em especial, a Revolução Francesa de 1789 e a Russa, de 1917.

No entanto, Losurdo aponta como a mesma condenação por parte de historiadores e revisionistas não se repete quando se analisa a revolução de independência estadunidense. Como se apenas ao processo vivido nos Estados Unidos fosse permitido dimensionar os fatos dentro do seu contexto histórico, como se neste episódio em particular a violência necessária contra a ação contrarevolucionária e conservadora fosse permitida. Na visão de Losurdo, as demais revoluções recebem o duro peso e classificação como ações de terror “jacobino ou bolchevique”, o que cria uma narrativa histórica colocada a serviço de uma visão neoliberal da História.

No fundo, o revisionismo despreza a política e o genocídio do sistema colonial no qual se fundou a expansão do capitalismo, sobretudo o europeu, e o que viria a ser classificado como o imperialismo.

O autor combate neste livro de 360 páginas o que eu, particularmente, chamo de um “contabilismo cínico”, presente em livros como “O Livro negro do comunismo” e outras obras e análises que acabam cumprindo o papel de transformar debates sérios sobre a polarização no século vinte, a construção das URSS, as guerras, em apenas uma palavra de ordem do tipo: “Marx matou 200 milhões de pessoas”, como escutamos este tipo de raciocínio frenquentemente nas redes sociais, caso de Bernardo Küster, blogueiro de extrema direita, e próximo dos círculos bolsonaristas.

O italiano aborda também o fato de que a ascensão do nazismo não esteve ancorada na figura de Hitler, mas justamente na aplicação do que foi o colonialismo e o expansionismo do Capital (característicos do império britânico e do recente imperialismo estadunidense), aplicado à expansão na tentativa de controle do Leste Europeu e na tentativa de aniquilação da nascente revolução russa. O império britânico foi o mais inspirador nesse sentido entre os três impérios com maior capacidade de expansão: Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.

Na direção de uma História genocida no processo colonizador, o autor resgata o que chama de holocausto dos peles vermelhas (página 249), também o fato de as populações escravizadas e colonizadas da África e Ásia terem servidor de bucha de canhão, gerando milhões de mortes, durante as duas guerras do século vinte. Além disso, resgata o episódio de massacre contra os comunistas na Indonésia. Uma visão completa e complexa do que foi o século vinte, e que infelizmente a limitada intelectualidade conservadora tenta transformar em palavras de ordem fáceis de serem repetidas sem reflexão alguma.

A via principal seguida pelo revisionismo histórico para relativizar o horror do judeicídio é a sua equiparação ao “genocídio político” ou “de classe” que se condena na tradição jacobino-bolchevique. Tal categoria se revela imediatamente instrumental se não for investigada em âmbito histórico-comparado e se for considerada de modo unilateral”, afirma o intelectual italiano.

Colonialismo, racismo e libertação nacional

A revolução russa de 1917 surge como uma aspiração que atende os países dependentes, colonizados e os povos explorados. Ela tem impacto principalmente nas consciências dos povos e países mais oprimidos (vide Vijay Prashad, no livro Estrela Vermelha sobre o Terceiro Mundo), repercute na Ásia, África, América Latina.

Uma revolução que aponta a dimensão total do marxismo (libertação dos povos), mas compreendendo a autodeterminação e particularidades no marco nacional. “Aliás, não se pode separar a formação do pensamento de Lenin e a maturação da onda anticolonialista iniciada na segunda metade do século 19”, afirma Losurdo, na página 124.

O pensamento de Lenin sobre o imperialismo e sobre o papel da opressão colonial faz com que a Revolução Russa justamente sinalize para essas populações e, logicamente, desperte também reações racistas e xenófobas.

Lenin se declara em total acordo com a tese do último Engels, segundo o qual ‘o proletariado vitorioso não pode impor nenhuma felicidade a nenhum povo estrangeiro sem com isso minar sua própria vitória’. É um princípio absolutamente internacionalista’ aos olhos do dirigente bolchevique”, página 119

Losurdo critica os historiadores que colaboram para essa visão de uma História “especista”, ancorados em difundir uma ideia de que a revolução geraria e seria sinônimo de barbárie e atraso, refletindo preconceito contra os povos do Oriente. “Qualificando o bolchevismo como simples sinônimo de barbárie ‘asiática’, Nolte acaba por se identificar até as raízes com o tipo de desespecificação próprio dos opositores da Revolução de Outubro” página 75.

Losurdo identifica como o processo colonial a ideia do selvagem, do bárbaro, algo usado na Europa e também na dizimação dos indígenas “peles vermelhas” nos EUA, o maior genocídio de que se tem história, defende o autor (e que escapa do contabilismo bizarro de um Olavo de Carvalho, por exemplo, sempre tão disposto a elencar “os mortos pelo comunismo”).

A opressão está marcada em cada curva do século dezenove e vinte. Losurdo elenca a ação italiana na Etiópia, a opressão na Indonésia e a matança de comunistas, bem como a chamada “Matanza”, acrescento eu, no país de El Salvador, na América Central, após insurreição de camponeses naquele país, em 1932.

Mais tarde, as quatro milhões de mortes na experiência mal sucedida para o imperialismo, o Vietnam, e as mais de 400 mil mortes brutais com caráter nazista (basta ler Chomsky) aplicadas na Guatemala. O imperialismo no século vinte e o colonialismo têm longa história de brutalidade e mortes, que é justamente o que muitos historiadores e jornalistas querem apagar ou ignorar.

Aqui o autor coincide com a avaliação da pensadora negra, ativista e marxista, Angela Davis, sobre o caráter militar da economia estadunidense. “Mais: se quisermos levar em consideração o tráfico de negros e deportação dos peles-vermelhas, veremos que os Estados Unidos são o país que protagoniza o mais colossal experimento de engenharia social. A reabilitação do colonialismo e o recalque de seus aspectos mais trágicos projetam suas sombras”, página 131.

A História deve ser considerada com as paixões próprias da análise e do posicionamento, de acordo com a identidade entre o historiador e o seu posicionamento diante da luta de classes. Porém, o rigor do contexto e dos fatos é imprescindível para que o historiador não seja um criador de chavões e combustível para o senso comum. Neste sentido, “Guerra e Revolução” continua sendo um livro ordem do dia.

Tocquevile tinha a honestidade intelectual necessária para reconhecer um ponto essencial: ‘Nós tornamos a sociedade muçulmana bem mais miserável, mais desorganizada, mais ignorante e mais bárbara do que já era antes de nos conhecer”, página 262.

 

 

 

 

 

 

 

Edição: Gabriel Carriconde