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Dois de Julho em tempos de pandemia

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"A verdadeira história de nossa Independência continuará sendo contada este ano, se não nas ruas, nas redes sociais". - Arquivo pessoal
É preciso lembrar que a Independência do Brasil também foi fruto da luta de milhares de mulheres

Desde o golpe que retirou a presidente Dilma Rousseff do Planalto, em 2016, temos vivenciado uma sucessão de ataques a democracia. De lá para cá, muitas foram as perdas que adquirimos em nossos direitos: trabalhistas, sociais, educacionais, raciais etc. Sobrevivemos a Michel Temer e agora estamos na luta contra Bolsonaro. No entanto, neste 2020 fomos pegos de surpresa por algo que, na teoria, poderia nos desestimular a lutar: a pandemia do novo coronavírus. 
Em quarentena a mais de cem dias, o Brasil e a esquerda brasileira, os progressistas que lutam por justiça social, poderiam estar imobilizados pelo medo. As manifestações de rua diminuíram, as pessoas estão dentro de suas casas com medo de serem contaminadas pela doença, e o país acumula mais de  60 mil mortes por causa da inoperância do Ministério da Saúde e de um presidente da república que se tornou o principal concorrente do vírus. 
Neste cenário de horror, quando se faz ainda mais necessário protestar e bradar pela permanência da democracia, não iremos poder manifestar nas ruas um dos maiores orgulhos de nossa história, como fazemos desde 1824: o Dois de Julho, data que marca  a Independência da Bahia e do Brasil.
Não tenho como não mencionar a tristeza que é não poder sair da Lapinha ao Centro Histórico, como fazemos todos os anos, empunhando bandeiras de liberdade, de democracia e contra a tirania e o fascismo. Para muitos de nós, este dia é mais importante, mais festivo e mais alegre do que qualquer manifestação popular.
É a partir dessa luta que expulsamos de fato os portugueses do território brasileiro que insistiam em nos manter como colônia e, então, conquistamos a independência de nosso país. 
Foi em território baiano que se deu a batalha final dessa conquista, a partir da união voluntária de pretos e pretas, caboclos e caboclas, somados a todos aqueles que queriam um país livre e independente das amarras dos colonizadores que nos escravizavam, nos retiravam direitos, nos impediam de ser livres e desenvolver socialmente.
Todo esse povo brasileiro estava organizado por esse ideal comum: liberdade para sua terra, possuindo como principal vantagem estratégica o domínio do relevo e da geografia local. 
Infelizmente, esta data, 2 de Julho, para boa parte do Brasil, ainda é desconhecida. Os motivos são vários, mas o principal deles é simples: a tentativa de retirar da Bahia, estado nordestino, o protagonismo da independência do país. 
Os livros que ainda circulam em nossas escolas, e em muitas faculdades brasileiras, escondem esse capítulo de nossa história e colocam o 7 de setembro, episódio meramente cenográfico às margens do Rio Ipiranga, como o dia xis da independência. 
Apesar da pandemia, a verdadeira história de nossa Independência continuará sendo contada este ano, se não nas ruas, nas redes sociais, em nossas casas, em nossos telefonemas, em reuniões virtuais, webinários, cortejos virtuais e das mais variadas formas preservando o distanciamento. 
É tanto o apreço que nós baianos temos por este momento histórico, que diversas organizações e entidades estão organizando atos virtuais, ao ponto de não ser possível contar nos dedos das mãos. 
E vai ser dessa forma que iremos reforçar que foi em Salvador, no dia 2 de julho de 1823, que as tropas brasileiras botaram para correr, pelo mar, o exército e a marinha portuguesa. 
Comecei meu artigo falando de Dilma Rousseff, presa política e torturada durante a ditadura, para ressaltar que nosso Dois de Julho não existiria se não fossem três heroínas notórias que representam as outras milhares de mulheres que tiveram papel fundamental. 
Nascida em setembro de 1761, a Abadessa do Convento da Lapa, em Salvador, Joanna Angélica, enfrentou bravamente os portugueses que tentaram invadir o convento para caçar brasileiros.  
Maria Quitéria de Jesus, outra guerreira, sem a autorização do pai para se alistar no exército, viajou para Cachoeira, cidade do recôncavo baiano, vestiu-se de homem, se denominando Soldado Medeiros, e se alistou no exército para ir à luta, a qual cumpriu com louvor. 
E  por último, dessas três, cito aqui a que mais representa a mulher  soteropolitana: Maria Felipa de Oliveira, a Heroína Negra da Independência. Conforme relata o historiador já falecido, mas muito querido, Ubiratan Castro, Maria Felipa era descrita como uma forte liderança na Ilha de Itaparica, uma mulher negra de papel exemplar na resistência insular. 
Da ilha, liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias. Cabia a ela o envio de mantimentos para diversos cantos do Recôncavo Baiano, cortado pelo Rio Paraguaçu. Ela coordenava as chamadas “vedetas”, mulheres que ficavam nas praias vigiando para prevenir o desembarque de tropas inimigas. 
O historiador  Xavier Marques, no romance "O Sargento Pedro", relata  que a heroína negra da Independência, durante as batalhas, ajudou a incendiar várias embarcações: a Canhoneira Dez de Fevereiro, em outubro de 1822, na praia de Manguinhos; a Barca Constituição, em 12 de outubro de 1822, na Praia do Convento. 
Outro fato marcante foi em 7 de janeiro de 1823, quando Felipa liderou aproximadamente 40 mulheres que nas praias se posicionavam para a defesa de nosso povo. Elas não usavam armas de fogo: surravam os portugueses com peixeiras e galhos de cansação e ateavam fogo aos barcos com tochas feitas de palha de coco e chumbo. 
Cabe a nós baianos e baianas sempre lembrar do Dois de Julho não como uma guerra apenas da independência da Bahia, mas do Brasil. E acima de tudo, cabe a nós, mulheres lembrarmos que essa guerra não seria possível se não fossem todas as guerreiras daquela época. 

Estamos de quarentena, mas continuamos vivas e prontas para a luta.


Um salve ao Dois de Julho e um grande salve às mulheres que  lutaram pela Independência. Que elas nos sirvam de exemplo e de espelho nesse período tenebroso do país. Estamos de quarentena, mas continuamos vivas e prontas para a luta. 
Afinal, não é a toa o que revela a última pesquisa da Revista Fórum,  mostrando que as mulheres estão em número muito maior na oposição a Bolsonaro do que os homens. E que também são muito menos impactadas pelas pautas reacionárias de fechamento do Congresso, Supremo Tribunal Federal e intervenção militar. Conforme a pesquisa, elas também se dizem mais de esquerda e centro-esquerda e são mais petistas. Entre as mulheres, por exemplo, o índice de ótimo e bom de Bolsonaro soma 28,8% contra 42,2% entre os homens. 
Viva ao Dois de Julho, viva às mulheres deste país e desta Bahia! E viva à Cabocla! Como todo ano, faremos a volta da Cabocla do Campo Grande, praça onde está o monumento em sua referencia, até  Lapinha, sua casa, sua morada, que a preserva para mante-la viva em nossa memória e em nossos corações!

Edição: Elen Carvalho