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Genocídio, próximo capítulo

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"Desenvolvemos a vacina e, mesmo assim, podemos ser subjugados pela própria ignorância e irresponsabilidade" - Reprodução
Sem planejamento, chegada da vacina no Brasil pode ser mais um estágio do genocídio de Bolsonaro

A mais ineficiente política pública de combate à pandemia do mundo, em curso no Brasil de Bolsonaro, tem sido caracterizada como uma ação genocida. Para muitos, trata-se de exagero. Depois de mais de 3 milhões de casos e 100 mil mortes, no entanto, é só juntar as pontas para afirmar o conceito: negação da gravidade da doença, estímulo à aglomeração, propaganda de medicamentos descartados pelas pesquisas, descumprimento de protocolos da Organização Mundial de Saúde e vacância do Ministério da Saúde, invadido por uma tropa de militares sem experiência em saúde pública.

A essas atitudes, somam-se dezenas de outras, como a ausência de um planejamento centralizado, demora em estabelecer uma ação de testagem em larga escala, falta de estratégia ordenada de compras de insumos. Desprezo com alertas de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, desinformação e tentativa de esconder informações com suspensão de divulgação de boletins e mudanças de metodologia de registro e contagem de casos.

Há uma sequência de tarefas para imunização que só serão eficazes com uma política responsável que não parece estar sendo assumida

O presidente passeou sem máscaras, desafiou a virilidade e a coragem das pessoas em enfrentar o vírus, recrutou um bando de líderes inconsequentes a seguir seu exemplo negacionista e fanfarrão. Nem mesmo a contaminação pessoal o fez alterar o comportamento, mantendo atitudes de exposição de várias pessoas – até mesmo funcionários pessoais. O governo falhou ainda em contextos localizados, como as referentes à população carcerária e povos indígenas, desprezando sua responsabilidade indelegável, colocando pessoas em risco além do já preocupante panorama de disseminação da doença.

No campo das ações políticas, que cobravam postura de estadista do presidente e uma ação tecnicamente orientada das autoridades de saúde, o que se viu foi um jogo de negaceio e retiradas. A criação de um clima de confronto e acusações passou por cima do interesse coletivo e da defesa da vida para se tornar um instrumento de campanha eleitoral antecipada, de olho no desgaste de possíveis adversários. A irresponsabilidade só não foi maior que a maldade humana, expressa no naturalismo como as mortes de brasileiros são desprezadas com um absurdo “e daí?”.

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Se isso não é a antecâmara do genocídio, está para ser criado um conceito que incorpore, além do “extermínio deliberado, parcial ou total de uma comunidade (...) pela submissão a condições insuportáveis de vida” (cf. Houaiss), uma vocação para o desprezo com a dor do outro. Bolsonaro é, neste sentido, além de genocida, um líder ineficiente, uma pessoa intelectualmente limitada para compreender a dimensão científica da verdade e um ser humano moralmente desprezível. Não necessariamente nessa ordem.

No entanto, nada é tão ruim que não possa piorar. Enquanto o mundo acompanha com atenção e otimismo a corrida pelo desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz, com dezenas de projetos em andamento, alguns em fase avançada de testes, no Brasil é preciso fazer um alerta pessimista. A chegada da vacina pode marcar mais um estágio na escalada genocida do comando da pandemia da covid-19. Se não tivemos planejamento em todas as etapas até aqui, tudo indica que podemos ser atropelados pelo mesmo descompromisso na hora de realizar a vacinação em massa de toda a população.

em plena pandemia, Zema conseguiu gastar menos que o mínimo constitucional: quanto mais doença, menos recursos.

Como a diretriz governamental até aqui foi se desresponsabilizar e passar para os estados e municípios as ações efetivas, criou-se uma realidade de descoordenação e falta de diretriz. O que pode levar a imunização para o rumo do confronto, e não da necessária colaboração nacional. O que se vê, hoje, é uma ação pulverizada de parcerias estaduais com institutos e laboratórios de vários países, com vistas a partilhar dos resultados dos testes das vacinas. Tanto na produção quanto na entrega dos produtos prioritariamente a seus cidadãos. São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e outros estados apoiam projetos chineses, ingleses e russos, entre outros, e já falam em imunizar suas populações. Outras iniciativas devem chegar ao país ainda este ano com o mesmo método, ampliando a balbúrdia da política sanitária.

Se o governo federal largou nas mãos dos estados e municípios todo o trabalho de combate à pandemia, não era de se esperar outra atitude, até como forma de defesa no caso de governantes adversários. Alguns governadores assumiram o protagonismo e tomaram conta das populações de seus estados. No Nordeste, a ação conjunta ensaiou a mais abrangente e responsável política pública no país. Em outros estados, como Minas Gerais, o governo estabeleceu uma parceria tácita com Bolsonaro, pensando em cobrar mais adiante, numa vergonhosa denegação da responsabilidade em nome da bajulação interessada. Para completar, em plena pandemia, Zema conseguiu gastar menos que o mínimo constitucional: quanto mais doença, menos recursos.

Não se pode deixar ao sabor do poder econômico ou político de cada estado a tarefa de garantir vacinas para sua população

A imunização em massa da população muda o jogo. Não se pode deixar ao sabor do poder econômico ou político de cada estado a tarefa de garantir vacinas para sua população. A vacinação, para conferir imunidade a todos os brasileiros, precisa ser planejada, seguir critérios epidemiológicos, alcançar altos índices (que ainda não foram estabelecidos, mas podem chegar a 90%) em todas as regiões do país.

Além disso, como a produção será escalonada, é preciso definir a ordem de aplicação entre os diferentes grupos populacionais, partindo das pessoas de maior risco e exposição. Uma estratégia do tipo: “eu compro, eu vacino” é chave para o fracasso da imunização ou, pelo menos, do atraso de seus resultados em termos universais. A imunização padece de uma espécie de garantia sanitária tecnicamente altruísta: quanto mais pessoas forem vacinadas, melhor para todos. Por isso é preciso vacinar primeiro quem precisa mais, de modo a aumentar a eficácia do controle comunitário ao longo do tempo. Em imunização, um mais um é sempre mais que dois.

Para isso, vamos precisar do que não tivemos até agora: planejamento. O governo federal, que não fez seu trabalho até agora, precisa começar a agir rapidamente, sob o risco de escrever mais um capítulo em sua saga genocida. Nada indica que essa responsabilidade esteja sendo assumida, e já está passando da hora. A entrega de uma vacina à humanidade é fruto do engenho humano, e deve ser comemorada. Mas fazer com que chegue de forma eficiente a todos só será alcançado com trabalho e política pública, e deve ser cuidadosamente planejada e executada com competência.   

Há uma sequência de tarefas que só serão eficazes com uma política responsável. Que começa com o registro das vacinas pela agência responsável, com a criação de um protocolo de imunização por grupos prioritários, com o estabelecimento da ordem de expansão por critérios sanitários, com a compra dos produtos com segurança técnica e financeira, distribuição, armazenamento (rede de frios), aplicação (produção de seringas e agulhas), treinamento de pessoal, estabelecimento de novos protocolos de testagem e tratamento, controle e acompanhamento de resultados.

Se o planejamento da vacinação não começar agora, atento ao interesse público e à defesa da vida, podemos perder a guerra

Já se antevê uma guerra entre estados e União, na qual todos perdem, sobretudo a sanidade coletiva que será atrasada. Assim como Trump vem comprando tudo para os americanos, estados mais ricos podem reservar para si parte da produção de vacinas de seus laboratórios, mesmo que sejam públicos. Além disso, não há como não desconfiar da distribuição das vacinas por critérios políticos ou pela capacidade econômica, inclusive com um mercado paralelo que reverbera a desigualdade social brasileira. Os ricos vão comprar no mercado negro – ou até mesmo nas clínicas particulares – a vacina que faltará aos grupos de risco, alargando o ciclo do descontrole da epidemia.

Não saímos ainda do risco da pandemia. Que segue com médias altíssimas de casos e mortes, enquanto se vocifera contra a o distanciamento social. Essa batalha parece ter sido perdida. Se o planejamento da vacinação não começar agora, atento ao interesse público e à defesa da vida, podemos perder a guerra. Não criamos o vírus e fomos derrotados por ele. Gaia, de acordo com cientistas, reagiu contra a ganância e burrice. Desenvolvemos a vacina e, mesmo assim, podemos ser subjugados pela própria ignorância e irresponsabilidade.  

Edição: Elis Almeida