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Coluna

O abuso de vulneráveis e o fundamentalismo

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73% das crianças e adolescentes sofrem violência sexual dentro de suas próprias casas - Giorgia Prates
73% das crianças e adolescentes sofrem violência sexual dentro de suas próprias casas

Talvez em nenhum outro momento da história da humanidade se fez tão presente as notícias sobre as mais variadas violências nas redes de comunicação. Racismo, aporofobia (ódio aos pobres), homofobia e tantas outras fobias, estão cada vez mais sendo expressas.

Há quem diga que um presidente que prega o ódio, não sente empatia, não consegue pensar além da bolha e do lucro do capitalismo, seja o maior fomentador de tantas desavenças entre os seres. E é verdade. A humanidade construiu a sua História em bases muito fortes desse mesmo ódio.

Foi alimentada e sustentada desde sempre por essas divisões e por esses medos que, hoje, ainda se traduzem no desrespeito aos direitos humanos de outrem.

Quando olhamos para trás, vemos a história de Jesus, por exemplo, essas pessoas já estavam lá. Gritando, aplaudindo, enquanto Ele era pregado na cruz. No tempo da dita "Santa Inquisição", as pessoas eram denunciadas, perseguidas, julgadas e condenadas (eram também queimadas vivas em praça pública) elas também estavam lá, pérfidas, aplaudindo e esbravejando. Quando pensamos um pouco mais pra cá, nos tempos quando pessoas negras e indígenas eram escravizadas para benefícios de alguns de outras raças, essas pessoas também já estavam lá. E quando adentramos a contemporaneidade e falamos sobre os mais variados tipos de abusos, essas pessoas ainda estão aqui e naturalizam vários tipos de violências.
A realidade, é que muitos tiranos, muitos abusadores, muitos violadores e estupradores, fazem parte da humanidade e, através de toda a sua crueldade, são os que estão nos espaços de poder, nas classes mais abastadas e nos lugares de tomada de decisões.

Um dos assuntos importantes que tem tomado conta das redes sociais nos últimos dias é o caso da menina de 10 anos de São Mateus, no Espírito Santo que foi abusada sexualmente pelo tio de 33 anos, durante 4 anos. A violência só foi descoberta após a menina ter recebido o diagnóstico da gravidez em uma consulta no hospital.

O caso trouxe à tona um debate emergente que é a discussão sobre o aborto. Embora o Artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, afirma que não se pune o aborto praticado por médico em alguns casos como de gravidez resultante de estupro e de acordo com a decisão que deve ser exclusiva da mulher, fundamentalistas religiosos contestaram pública e agressivamente o direito da menina de 10 anos de realizar a cirurgia.

O estupro de vulneráveis é, infelizmente, mais comum do que se imagina. De acordo com os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 73% das crianças e adolescentes sofrem violência sexual dentro de suas próprias casas.

Temos 80 anos em que esta lei está ativa no país e uma cultura do estupro, que é estrutural, naturalizada pelo patriarcado e alimentado pelas construções fundamentalistas e do capitalismo. A questão é: por que estamos questionando o aborto necessário para uma criança de 10 anos (uma vez que criança não é mãe) e não a violência dos abusadores e o tipo de pena para que isso cesse? Por que, ao invés de irem ao hospital e colocar a vida da menina, novamente em risco, o ato de julgamento e punição, novamente, recai sobre a criança e não sobre o tio abusador?
A legislação preserva a identidade física e moral da criança. No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990 o Art. 17 nos diz que: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente".

E ainda assim, o tema é rasamente discutido sobre vida e morte. Precisamos falar sobre aborto. Precisamos falar sobre sexualidade, precisamos falar sobre o machismo e as estruturas do patriarcado, precisamos falar sobre esse fundamentalismo que limita a mente e a liberdade das pessoas. Precisamos repensar o sistema capitalista que não se importa com a vida humana. É uma situação grave.

Quando a gravidez é provocada pelo estupro, é um direito da vítima de entrar em um hospital e pedir que seja feito o aborto. Aqui a questão é de políticas públicas, de educação sexual, de classe e raça, do cuidado com crianças, adolescentes e mulheres e o direito de elas decidirem sobre seus corpos, sobre suas vidas. E quem fere isso, seja o Estado, seja o funcionário do hospital, o servidor público o padre ou os seguidores do fundamentalismo, é que são os verdadeiros criminosos.

Edição: Pedro Carrano