Rio Grande do Sul

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A Cidade nos pertence

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Todos os finais de semana, de maneira quase religiosa, eu me dirigia à Usina do Gasômetro, entrava na Sala PF Gastal e só saía quando tava com a cabeça cheia e os olhos cansados de ver filmes - Divulgação
Eu cresci nas caminhadas do Fórum Social Mundial, do colo para a garupa, até ter fôlego pra caminhar

Nesta semana, com as pré-candidaturas definidas, e o povo de todas as cidades se preparando para decidir seu futuro, recebi e ofereço a vocês – com muita honra – este texto de Maria Galant Melgarejo*.

Eu nasci em Porto Alegre, nunca me mudei daqui. Eu costumava dizer que mesmo que, em algum momento saísse de POA, eu ia voltar. Eu gosto das cores do Centro Histórico no fim da tarde. Eu gosto da orla do nosso rio. Gosto da discrepância entre a área rural na zona Sul e a opulência dos condomínios da zona Norte, coisas que só podem acontecer numa cidade com plano diretor muito confuso, mas que vão criando uma paisagem interna, de afeto, nos habitantes.

Meus pais sempre foram muito preocupados com a questão cultural, eu lembro de ir pequenininha no teatro ver as peças do Grupo Cuidado que Mancha. Lembro de ganhar um balão de gás hélio na saída de uma peça do Roberto Oliveira, da minha mãe dizer pra segurar firme se não ele voava, lembro também de soltar e ver aquele balão voando tão alto até parar de enxergar. Lembro de, mais tarde, na escolinha onde eu fazia pré-escola, contar que meu balão ainda estava viajando pelo espaço.

Estou contando isso pra explicar que tive muita sorte, que minha família sempre foi muito preocupada com cultura, com educação, em me criar em um ambiente lúdico. E isso faz parte de quem eu sou hoje, cada teatro infantil que meus pais me levaram, cada exposição, nos museus gratuitos do centro da cidade, faz parte de quem eu sou hoje. Consigo traçar relações diretas. Uma pena saber que essa Porto Alegre, preocupada com cultura, com o espaço de convivência, com um acesso mais democrático, aos poucos deixa de existir.

Quando eu era pequena, antes de entrar no ensino fundamental, meus pais me matricularam numa escola de educação infantil, o PATO, uma escola construtivista, que valorizava a importância da família na educação das crianças, uma escola que se ia para se conhecer, não só para aprender. Quando chegou a hora de decidir sobre a graduação, aproximadamente uma década depois de deixar o PATO, eu tinha certeza de que queria fazer alguma licenciatura. Queria ser professora, aprender sobre pedagogia para poder trabalhar com crianças, de preferência num lugar como aquela escola que eu havia frequentado.

Meus pais também me colocaram para fazer aulas de artes no CDE (Centro de Desenvolvimento da Expressão), uma escola estadual, de artes, onde a gente fazia experimentações com processos artísticos diferentes. Foi onde eu deixei de ser uma criança que gostava de desenhar em casa, para ser uma criança que gostava de fazer de tudo, e mostrar a produção, e conversar sobre o que fazia. Eu devo a isso, no ano que vem estar me formando na UFRGS, em Artes Visuais - Licenciatura.

Quando estava na escola secundária, eu sentia um pouco de dificuldade de me relacionar com a maior parte dos colegas. Eu fazia teatro no turno inverso das aulas, e isso permitia experiência de trocar com pessoas de outros ambientes. Meus pais me colocaram pra fazer teatro em outro lugar, na TEPA (Teatro Escola de Porto Alegre). Eu gostava tanto, que hoje em dia, mesmo estudando Artes Visuais, e seguir querendo trabalhar com educação, também trabalho como atriz. Fiz filmes e séries para TV, graças às conexões que surgiram enquanto estudava teatro. Não digo que foi tudo por conta de ter estudado teatro, porque foi ali que tomei gosto por cinema antigo, por filmes diferentes, por coisas que não passam na televisão. Todos os finais de semana, de maneira quase religiosa, eu me dirigia à Usina do Gasômetro, entrava na Sala PF Gastal e só saía quando tava com a cabeça cheia e os olhos cansados de ver filmes. Aí a gente sentava no café, ou no banco ao lado da bilheteria, e desembestava a conversar sobre tudo que havia visto.

Eu me apeguei tanto à Sala de Cinema PF Gastal, que meu aniversário de 2014 foi assistir um filme lá, seguido de salgadinhos e docinhos no saguão, pra todo mundo que tinha aproveitado aquela sessão de O Fantasma do Paraíso, do Brian de Palma, um dos meus preferidos até hoje.

Eu mudei no mesmo ritmo em que Porto Alegre me oferecia oportunidades de aprender, de conhecer, de criar. Eu cresci nas caminhadas do Fórum Social Mundial, do colo para a garupa dos meus pais, até ter fôlego o suficiente para caminhar do lado deles. Eu acho mesmo que tive muita sorte, de ter estas oportunidades. O que me dói de olhar para Porto Alegre agora, é perceber que os acessos às coisas, aos lugares, à outras maneiras de ver e ser, se tornam cada vez mais restritos e menos democráticos.

O CDE foi completamente sucateado, ainda no primeiro ano do governo Sartori (MDB), em 2015. Tiveram que sair do prédio de 3 andares, mais subsolo, onde aconteciam as oficinas de cerâmica, em uma avenida de fácil acesso da cidade. O Centro de Desenvolvimento da Expressão se tornou uma sala, que pode receber poucos alunos. A TEPA, escola de teatro que formou tantos atores que conhecemos hoje, virou uma escola itinerante. Ela existe onde os donos estiverem, porque em Porto Alegre não é de interesse público que as pessoas tenham acesso à arte.

A Sala PF Gastal, junto com tudo que acontecia na saudosa Usina do Gasômetro, se encontra fechada para "reformas", desde 2017, primeiro ano de gestão do atual prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB), mas até 2019 não havia acontecido nem licitação para dar início a qualquer obra. Reforma essa que pretenderia "modernizar" o espaço. Nada se fala sobre a situação da sala PG Gastal, que foi referência na Capital, recebendo grandes nomes do cinema brasileiro e internacional.

E para terminar de nominar o desmonte que nossa cidade vem sofrendo, e que me atravessa por pensar que, se eu nascesse em 2020, eu não teria como conhecer metade das coisas que são importantes e moldam minha maneira de me relacionar com arte e com outras pessoas até hoje.

Escrevi isso tudo, porque essa semana fui informada de que o PATO, a escola que completaria em 2020 53 anos de história, fechou. Uma escola que, juro, não conheço NINGUÉM que tenha frequentado e não tenha memórias maravilhosas para contar. Uma das proprietárias originais, e então diretora quando eu fui aluna, a Elisabeth Mariani, dizia que as crianças não sabiam o quão importantes eram para a história do PATO. Eu, particularmente, nunca esquecerei de dias que passei lá.

Quando recebemos essa notícia, eu voltei a contatar e fui procurada por ex colegas que não via desde os 5 anos de idade. Circularam fotos, lembranças dos nossos dias felizes de criança. Conversei com uma ex-colega e lembramos de uma vez em que, sentadas na cama dos meus pais, numa tarde de férias, na passagem da pré-escola para o ensino fundamental, assistindo uma fita VHS, começamos a chorar porque havia caído a ficha de que crescer era abandonar o que passava.

Minha mãe disse que não. Disse que crescer era cultivar o que passava, era sentir que dentro da gente, ainda seríamos as mesmas crianças correndo no pátio da escolinha, e que sempre poderíamos voltar lá para visitar.  Devido à pandemia que vivemos agora, e na falta de investimentos públicos para a manutenção de espaços como escolas de educação infantil, que estão proibidas de abrir pelo risco de contaminação, as oportunidades de acesso ao que cultivar, os espaços necessários, aos poucos deixam de existir.

É triste saber que os lugares que me construíram até aqui, por falta de interesse público em proporcionar para a população memórias como essas, não estarão aqui no futuro. Perceber que o descaso com a produção e manutenção da cultura, da educação, e do pensamento crítico na nossa cidade, decorre da omissão de muitas pessoas e interfere diretamente nas lembranças que todos teremos da vida que passamos aqui.

Lembrei de um filme francês que vi no cinema da Usina, onde se reivindicava a cidade como um bem intrínseco aos seus habitantes, chamava Paris nos Pertence (de Jacques Rivette, 1961), sobre uma jovem no contexto pós-guerra, que entra em contato com um grupo de teatro independente, e passa a rever suas relações com o território, a partir desse encontro. A cidade nos pertence.

* Maria Galant, 23, é atriz e estudante de artes visuais - licenciatura. Pesquisa análise fílmica e representações de masculinidades e adolescências no cinema.

Edição: Katia Marko