Rio Grande do Sul

Coluna

O entreguismo fardado no governo Bolsonaro: um projeto político

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"Na história brasileira, a potência estrangeira, com capacidade de produzir consenso dentro das elites brasileiras, e de se beneficiar da consolidação desse pensamento, são os Estados Unidos" - Charge de Rafael Costa
Ao dedicarem-se a fazer política doméstica, não defendem nada e atuam pior ainda na 'polititica'

Setembro de 2020, por Pedro Guedes * e Bruno Lima Rocha

O entreguismo dentro da política brasileira, não é um fenômeno novo, alternando maior ou menor proeminência, ao menos desde 1952, com o debate acalorado resultante da Campanha do Petróleo é Nosso. Essa campanha, de forte teor popular e participação direta – ainda que instrumentalizada pelo trabalhismo do governo eleito de Vargas - deu origem à decisão do Estado brasileiro em criar a Petrobras, em 1953. De maneira geral, o entreguismo é caracterizado pela defesa da abdicação do uso dos recursos (naturais ou artificiais) que o país possui em prol do direito de uso destes mesmos recursos por uma potência estrangeira e suas empresas. Tal fenômeno é associado com algumas forças políticas. No período entre o final do Estado Novo e o golpe de 1º de abril de 1964, o partido político caracterizado como o mais entreguista era a União Democrática Nacional (UDN, abril de 1945-outubro de 1965). Dentro da extrema direita militar no período da Guerra Fria antes do golpe, havia um amplo setor entreguista, meio caricato, para além da geração histórica da Escola Superior de Guerra (ESG).

Essa ideia é baseada na crença de que o Estado brasileiro não seria capaz de gerenciar de maneira eficiente o uso desses recursos, agindo inclusive de maneira corrupta e patrimonialista. Enquanto a iniciativa privada, mesmo a estrangeira, traria uma racionalidade nova, imaculada dos vícios que seriam exclusividade do Estado brasileiro. O pano de fundo é pior. Para essa laia colonizada, não seriamos capazes de gerir nossos próprios recursos nem buscar as saídas coletivas para a vida contemporânea em sociedade. Parece que, segundo teses antigas como a do geógrafo holandês-estadunidense Nicolas Spykman, reproduzindo falácias do estrategista britânico Halford Mackinder, identificam na origem ibérica dos invasores de Palmares e Pindorama uma espécie de “vício de origem”, “mal interior”. O efeito ideológico desse sentido de crenças em alto nível decisório é proporcional à difusão do “viralatismo sociológico” que abunda no bolo fecal das mentalidades de deformadores de opinião subordinada. No mundo castrense, em parte, essa “tradição” coexiste com outras.

Na história brasileira, a potência estrangeira, com capacidade de produzir consenso dentro das elites brasileiras, e de se beneficiar da consolidação desse pensamento, são os Estados Unidos. No século XIX, a decadência do Império Português gerou uma vinculação dúbia com Lisboa-Coimbra e o Porto. Na sequência, oscilamos entre a pressão da marinha, bancos e indústrias inglesas e a projeção cultural e institucional da França. Na República Velha, a presença franco-inglesa começou a ser rivalizada com a dos Estados Unidos. Na década de 30 do século XX, a Operação Panamericana começa a ter suas influências a ponto de hegemonizar o andar de cima do país. Com base no ideário liberal (oligárquico e colonizado, não a matriz dos antigos liberais exaltados ou democratas radicais, ou do federalismo radical como na tradição artiguista e um pouco na matriz pernambucana) que em suma, defende uma participação do Estado na economia em patamares mínimos, mesmo em áreas estratégicas, como tecnológica, infraestrutura, energia e defesa, por exemplo. Essas ideias são publicadas e difundidas no segmento civil da sociedade por think thanks, como o Instituto Millenium (ligado à Rede Globo de Televisão) ou o Instituto Mises Brasil . Em termos de processo histórico e formação, há uma espécie de fábula sistematizada, onde não se estudam os passos tomados pelas potências para criarem, por exemplo, seus parques industriais ou então não se leva em conta o Sistema Internacional e a capacidade de criação de excedentes de poder por países que estão na Semiperiferia, ou quase potências, tal é o caso do Brasil.

Dentro dos círculos militares, a penetração dos ideais liberais e antinacionais foi acelerada em três momentos muito distintos. O primeiro foi nos anos subsequentes do início da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Aqui, alguns dos alto-oficiais que lideraram as tropas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) foram ensinados dentro parâmetros do National War College, dos Estados Unidos. Calcados em um nascente anticomunismo, estes militares assimilaram entre outras ideias que a melhor maneira de o Brasil se inserir dentro do Sistema Internacional, era de maneira atrelada aos interesses e objetivos dos EUA. Em 1949, a Escola Superior de Guerra foi criada, sendo o principal bastião dos ideários anticomunistas nas Forças Armadas. Desta forma, reproduzimos na oficialidade a tese da “doutrina de segurança hemisférica” ou da “teoria das fronteiras ideológicas”. A metástase dessas ideias é tamanha que encontra efeito nos discursos do presidente Jair Messias Bolsonaro, incluindo o tétrico e mentiroso discurso do sete de setembro do corrente ano. Vale ressaltar que o processo de incorporação da alta oficialidade brasileira se deu após um período de influência germanófila e até mesmo filo-nazista, além de evidente filiação fascista, tal é o caso do conspirador Olímpio Mourão Filho, operador do autogolpe do Estado Novo em 1937 assim como o de 1º de abril de 1964.

O segundo momento foi durante os estágios iniciais do Golpe Cívico e Militar de 1964. Este período é importante de mencionar por que é aqui onde as linhas nacionalistas mais próximas das ideias progressistas e dos partidos políticos de esquerda dentre os militares de posições médias e altas (de majores a generais) vão ser expurgadas. Aqui, é fortalecida a ideia de que ações de cunho nacionalista, como estatizações, medidas de proteção de mercado, exclusividade do Estado em áreas economicamente sensíveis entre outras medidas, são “comunistas”, devendo assim, serem erradicadas das casernas e da sociedade. O apoio estadunidense ao golpe – a escolha da embaixada dos EUA do primeiro ditador-presidente, o marechal Castelo Branco –, se deu a partir de financiamento dos grupos de oposição ao governo João Goulart, bem como pela promessa de suporte militar aos revoltosos .

Contudo, após o governo do marechal Castelo Branco, muitas dessas medidas serão tomadas pelos militares que escantearam os oficiais ideologicamente mais alinhados aos Estados Unidos das posições de poder no Regime Ditatorial Militar. Na década de 1970, muitos destes militares desprestigiados iriam se aglutinar em torno do General Sylvio Frota, tentando derrubar o governo Geisel e a ala nacionalista conservadora do Exército, no que ficou conhecido como “Golpe dentro do Golpe”. Geisel a fim de evitar maior desgaste interno do Regime Ditatorial, demite Frota e isola os elementos do Exército próximos a ele. O recalque da caserna, o “ciúme do poder”, o sentimento de revanche veio à tona. Na queda de braço entre Golbery e Meira Mattos, primeiro ganhou o primeiro e depois o FMI jogou ambos na lona, com a maxidesvalorização do cruzeiro e a derrota do governo Figueiredo. A subordinação se fez absoluta e parece que a meta do Brasil Potência virou um mito a ser reivindicado por viúvos do regime, como o cardiologista e eterno pretenso líder nacionalista da extrema direita, Enéas Carneiro (1938-2007).

O terceiro momento importante para o entendimento do movimento entreguista nas Forças Armadas é a queda do governo Dilma Rousseff, em 2016. Durante a crise política que culminou no processo de impeachment de inspiração golpista, o Alto Comando do Exército não apenas se manteve calado frente às movimentações de grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL), mas agiu para coagir o já frágil governo Dilma (via ameaças de quartelada pelo Twitter) e, segundo o áudio do senador Jucá, agir conjuntamente com o Supremo Tribunal Federal, a fim de concretizar a sucessão de Dilma com a posse do vice-presidente, Michel Temer. “Com o Supremo, com tudo”, incluía também uma fragilidade do estamento superior com mentalidade bananisteira, acuado pelas tuitadas do então ainda comandante-geral do Exército Brasileiro, general Eduardo Villas Bôas. Diante de uma evidente ofensiva jurídica contra a Petrobras e visando a desindustrialização do país, generais, brigadeiros e almirantes nada fizeram além de surfar na onda do “anticomunismo” sem Guerra Fria ou na cruzada udenista, mas com uma vertente cada vez mais exibida de defesa de golpe de Estado através da “intervenção militar constitucional” e outras excrescências intelectuais. Na propaganda cibernética da extrema direita anterior ao golpe com apelido de impeachment em abril de 2016, era comum a presença de militares da ativa com declarações de realinhamento aos EUA e à subordinação estratégica ao Comando Sul da Superpotência.

Durante o governo de Temer, um programa calcado na entrega do patrimônio nacional foi colocado em prática, a “Ponte para o Futuro”. Em linhas gerais este programa previa a venda de empresas públicas, a concessão do uso e gerenciamento de estradas, portos, aeroportos entre outras ações. Isso foi feito sob a ideia de que o Estado estaria “inchado”, cheio de empresas públicas ineficientes e que os recursos de valor econômico (minas, portos, aeroportos e jazidas) não estariam sendo utilizados de maneira correta. Neste momento, não houve nenhum uma nota de oposição por parte dos oficiais de alto escalão das Forças Armadas, um contraste com a recente atividade de muitos oficiais militares até então, entre 2016 e 2017. Pela demonstração da via dos fatos, a prioridade não era a defesa da capacidade de desenvolvimento do país e sim fazer coro com a projeção de poder do Comando Sul e nas aventuras securitárias junto ao governo colombiano, ampliando a tensão com a Venezuela e realizando exercícios conjuntos na Amazônia.

Em 2018, um candidato que se apresentava como um “nacionalista”, de ideologia conservadora e entusiasta da ditadura militar se elegia presidente do país, Jair Messias Bolsonaro, pelo Partido Social Liberal (PSL). Como vice na sua chapa, estava o general reformado Hamilton Mourão, de quatro estrelas. Jair Messias foi um “péssimo militar”, segundo relato do ditador-presidente Ernesto Geisel. Foi praticamente expulso do Exército pela tentativa de atentado ocorrido na Praia Vermelha (RJ), na metade de década de ’80 do século XX. Bolsonaro se colocava como um “anti-geisel”. Assim, ele e seu clã estariam dispostos a desmontar todo o legado, como o que restou do parque industrial brasileiro, as linhas gerais de nossa política externa (pragmática, universalista e autônoma) [9]. Na “guerra cultural” que chafurdou o país, o debate em termos internacionais desceu às profundezas da mesquinharia intelectual, e parece que desse lodo não sai fácil. Considerando que em tese as Forças Armadas estariam dedicadas à defesa do país, e não à manutenção e preservação da ordem social injusta e racista.

As semelhanças entre Bolsonaro e o ex-general Sylvio Frota residem principalmente no uso da força – modernamente na ameaça do uso da força - como meio de controlar o ambiente político[9]. É difícil pensar em como as Forças Armadas se deixaram levar por um ex-militar, apoiado por pentecostais campeões do pecado da usura, especuladores financeiros parasitas e ideólogos de baixíssimo nível, como Olavo de Carvalho. Mas diante da evidência dos fatos e no correr do período já cumprido do desgoverno da extrema direita, se observamos apenas o alinhamento ideológico entre o Alto Comando das Três Forças e o núcleo do Bolsonarismo, é exatamente isso o que está ocorrendo. Há ainda, o interesse de militares da ativa e reformados em obter cargos na esfera civil e de participar do processo da tomada de decisão do Estado brasileiro. A relação de prebendas e postos de comandos civis em desvio de função com militares à frente evidenciam que diante da “segurança nacional”, o mais importante é “ser amigo dos amigos”.

A maior presença dos militares no governo Bolsonaro, atuando em todos os escalões da máquina pública, explicita o retorno de oficiais militares não apenas ao governo, mas também no ambiente político. Cuidando de articular o apoio ao governo, compor maiorias no Congresso Nacional, distribuir cargos entre os políticos do Centrão são tarefas que demonstram a tentativa da volta das Forças Armadas como um “Poder Moderador” no ambiente político nacional. Como se sabe, ao dedicarem-se a fazer política doméstica, não defendem nada e atuam pior ainda na “polititica” cotidiana.

Essa função que os militares tentam trazer para eles hoje remonta a uma tradição de intervenção na arena política que tem origem ao período posterior à Guerra do Paraguai, ou ao Genocídio do País Guarani. Mesmo vitoriosos no conflito – com o apoio explícito da Inglaterra - mas sem a atenção do Governo Imperial, os militares começam a se estruturar como um agente político organizado, que irá proclamar a república em 1889 através de um golpe de Estado; governar de maneira ditatorial até o início da República Velha; atravessar momentos de aventuras redentoras como o tenentismo; co-governar o Estado Novo através de Góis Monteiro e Gaspar Dutra; servir como instrumento de desestabilização permanente entre 1946 até deflagrar o Golpe Civil e Militar de 1964.

Esperava-se que a Nova República, com a promulgação da Constituição de 1988, com uma elite política minimamente coesa e sociedade civil mais atenta, fossem inibir a volta dos militares a esse dúbio e perigoso papel. Ledo engano, aproveitando-se de uma crise econômica pesada – impulsionada pela péssima escolha do Chicago Boy Joaquim Levy para aplicar o receituário austericida - descrença na política (através primeiro do pragmatismo dos governos social-democrata e na sequência com a terra arrasada promovida pelo Partido da Lava Jato) e um sentimento de saudosismo da supremacia do poder militar sobre a ordem civil -, os militares ensaiam uma atuação cada vez maior na política brasileira. Essa presença se cristaliza na grande quantidade de militares da ativa e milicos reformados trabalhando em ministérios, secretarias, autarquias e empresas estatais.

A presença de tantos militares nos ministérios civis, com destaque no Ministério da Saúde, que liderados pelo general intendente Eduardo Pazuello - ainda como ministro interino -, foram incapazes de esboçar o mínimo. Milhares de milicos em desvio de função com postos civis e não sai uma estratégia minimamente eficaz de apoio aos estados e municípios durante a corrente pandemia de covid-19! Até o momento de concluir a revisão desse texto, o país já sofria mais de 130 mil mortos pela pandemia e também em função do desgoverno e falta de assistência apropriada. Tamanho descalabro também é o retrato da intervenção não oficial do Exército no governo brasileiro.

A hipocrisia é do tamanho do entreguismo colonial. Essa presença mais ativa dos militares na política brasileira não impediu que a Base de Alcântara, no Maranhão fosse arrendada para os EUA quase que de graça e que a venda e desmembramento da Embraer fossem concretizadas. Tampouco impede o desmonte agressivo sobre a Petrobras, com a liquidação da BR Distribuidora e a desativação de refinarias. Com oficiais militares profissionais assim, uma potência agressora não teria problema algum em invadir nosso país. Que vergonha.

* Pedro Guedes é graduado em Relações Internacionais pela Universidade do vale do Rio dos Sinos. Graduando de direito pela PUC/RS. Sócio da C&G Consultoria e membro do Grupo Capital e Estado.

Edição: Marcelo Ferreira