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Não é fácil ser o pior do mundo

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cemitério, flores, uma muleher
"O governo aproveitou a pandemia para ferir os princípios do SUS e aprofundar o desmonte da pesquisa científica, enquanto enfraquecia o federalismo em nome de interesses eleitorais futuros" - Créditos da foto: Agência Brasil
O mais grave é que o país tinha tudo para se sair bem.

Seis meses depois da primeira morte por covid-19 uma constatação se impõe: é preciso muito esforço para ser o pior país do mundo no combate à pandemia. Os números de casos e mortes que colocam o Brasil entre os mais afetados pela doença não foram resultado do acaso ou da fatalidade, mas um programa que vem sendo levado a cabo de maneira determinada a partir do governo Bolsonaro.

O mais grave é que o país tinha tudo para se sair bem. Contamos com um sistema universal de saúde pública, com experiência em epidemiologia, organização de serviços, sucesso em campanhas de imunização e articulação entre as esferas de governo. Além disso, o Brasil tem um histórico em ciência e tecnologia reconhecido por padrões de excelência internacional e profissionais de saúde altamente preparados e comprometidos.

Para completar, o país acumulava experiência democrática que parecia não ter volta, que apontava para a vigência de alto grau de participação responsável, que poderia ser traduzida em medidas solidárias e dotadas de racionalidade. O que o patrimônio sanitário garantia, a ciência prometia e os profissionais chancelavam, a cidadania confirmaria sempre que acionada em nome do interesse coletivo.

Aí chegou Bolsonaro.

A ação deletéria do governo em matéria de combate à doença pode ser dividida em dois grandes grupos. O primeiro é o das ações destrutivas, que atuaram na desmontagem do edifício de proteção erguido durante décadas pelo engenho de sanitaristas, pesquisadores e profissionais de saúde. O governo aproveitou a pandemia para ferir os princípios do SUS e aprofundar o desmonte da pesquisa científica, enquanto enfraquecia o federalismo em nome de interesses eleitorais futuros.

Governo aproveitou a pandemia para atacar o SUS, a pesquisa científica e o federalismo em nome de interesses eleitorais

O segundo grupo da lambança voluntária é formado por atitudes equivocadas, que foram compondo um programa atravessado de erros técnicos, retrocessos políticos e ações de desagregação social e institucional. Não bastou destruir, foi necessário colocar no lugar projetos tortos em termos científicos, autoritários na gestão, mentirosos no trato com as informações e potencialmente genocidas em relação a determinadas populações, como os povos indígenas – mas não só eles.

Sinteticamente o decálogo da derrocada sanitária brasileira frente ao coronavírus comandada pelo governo federal pode ser assim enunciado.

1)      Negarás a doença e sua gravidade.

2)      Criarás desconfiança entre as esferas de governos com olhos em objetivos eleitorais.

3)      Buscarás mudar os padrões de informação, atacando fundamentos da ciência epidemiológica e afrontando o dever de transparência com o cidadão.

4)      Demitirás ministros oriundos da área médica e entregarás o controle a um general que se cercará de militares que carregam nos ombros divisas do mesmo despreparo do chefe.

5)      Defenderás o uso de medicamentos rejeitados por pesquisas em todo o mundo, inclusive inserindo fármacos potencialmente perigosos em protocolos oficiais assinados na caserna.

6)      Atacarás as instituições de maior reconhecimento no mundo, a partir da OMS e chegando até às próprias recomendações do Ministério da Saúde, com bravatas, mentiras e desobediência de normas consensuais.

7)      Aglomerarás sob qualquer pretexto (até mesmo em favor de atos antidemocráticos) e não usarás máscaras, como prova de virilidade vicária, ressentimento e estupidez.

8)      Politizarás a ciência para invalidar medicamentos e vacinas de países considerados adversários ideológicos.

9)      Darás prioridade ao mercado e ao retorno de atividades produtivas, independentemente da segurança individual e coletiva.

10)   Zombarás da dor do outro, apelando para inevitabilidade da morte e para a deserção dos fracos.

Pode parecer que Bolsonaro articule orgulhosamente em torno de si tanto desatino. Mas é preciso reconhecer que não está sozinho. Muitos governadores e prefeitos seguiram a mesma cartilha, por concordância expressa ou covardia. Empresários de vários ramos colocaram lenha na queimada da preservação das vidas em favor de seus negócios e, ainda hoje, clamam por mais abertura e irresponsabilidade.

Bolsonaro não está sozinho em seus desatinos, muitos governadores e prefeitos seguiram mesma cartilha

E até mesmo parte da população, jogada como bucha de canhão nessa política genocida e autodestrutiva, se oferece ao risco ecoando comportamentos arrogantes e violentos de desobediência de normas sanitárias. Tudo em favor de uma concepção deturpada de liberdade como direito individual de passar por cima dos valores coletivos em nome de interesses egoístas e vulgares.

Nem mesmo a perspectiva de uma vacina segura e eficaz escapa dessa sanha, com a defesa prévia da recusa à imunização ganhando a agenda pública. A enormidade foi proferida pelo presidente como um álibi prévio para mais uma vez se contrapor a estados que assumiram a responsabilidade que ele denegou, e que agora anunciam progressos em testes feitos por parcerias de laboratórios estrangeiros com institutos de pesquisa públicos nacionais.

A herança que fica como compromisso inadiável é, desde já, cerrar fileiras na defesa do SUS, do trabalho autônomo dos profissionais de saúde, da pesquisa científica, da universidade pública, e do conhecimento. Em seis meses esses patrimônios foram ameaçados de morte. E ganharam a trágica companhia de 140 mil brasileiros que perderam suas vidas.

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Edição: Elis Almeida