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Constituição 32 anos: direitos, golpes, desconstrução e luta

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O pacto republicano foi rompido em 2016, com o impeachment da presidenta eleita, feito por decisão política da maioria parlamentar, a despeito da inexistência de crimes de responsabilidade - Geraldo Magela / Fotos Públicas
Não é o Estado que promove mudanças, é a sociedade

Quando o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferiu, naquele 05 de outubro de 1988, o discurso histórico afirmando que estava proclamada a Constituição Cidadã, suas palavras não eram carregadas apenas de simbolismo. Eram representativas, de fato, de um texto que continha uma ampla lista de direitos civis, políticos, sociais e econômicos. A obra sintetizava uma etapa fundamental do processo de redemocratização do Brasil após 21 anos de ditadura civil-militar, que se concluiria com as eleições livres e diretas no ano seguinte.

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Sob o ponto de vista político, a afirmação de ódio e nojo a qualquer ditadura e, sobretudo, a diferenciação entre Estado e sociedade, fizeram com que aquele enunciado fosse ontológico. Não é o Estado que promove mudanças, é a sociedade, diria o deputado de forma emocionada. “O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador.”

O que não teria como prever o “Doutor Ulysses” provavelmente, é que a luta pela manutenção e implementação do texto constitucional se daria de forma tão intensa já no dia seguinte à sua promulgação. Menos ainda que, ao completar 32 anos, a Constituição teria sido emendada 108 vezes e, em alguns casos, de forma tão profunda a ponto de ser a antítese da vontade do legislador, ou melhor, da sociedade. Tampouco se poderia apostar que estaríamos, após apenas três décadas, não apenas debatendo o significado, mas a importância e manutenção de princípios do Estado democrático de direito que são conquistas civilizatórias, como a liberdade de expressão e de manifestação, bem assim o fascismo, a apologia à ditadura e seus próceres.

O pacto republicano que permitiu a “Constituição Cidadã” foi rompido em 2016, com o impeachment da presidenta eleita, feito por decisão política da maioria parlamentar, a despeito da inexistência de crimes de responsabilidade. A condução do processo por setores, segmentos e partidos que antes haviam se comprometido com a redemocratização do país; costurado com a votação das “pautas bombas”, que desestabilizaram o governo e jogaram o país em uma crise sem precedentes; somadas ao patrocínio e corroboração com as manifestações de rua de caráter antidemocrático, xenófobas, misóginas, profundamente agressivas, criaram os germes do que hoje se tem como “normal”: a defesa do indefensável em termos de liberdades e do que é moral e politicamente correto, a ponto de se atacar, intimidar, constranger e investigar quem se coloca como militante antifascista.

O texto constitucional está em disputa hoje, como desde sua promulgação. Contudo, precisamos reconhecer que estamos perdendo essa guerra há algum tempo.

Nascida como um documento de cunho humanista, com a vontade de construção de um projeto de sociedade com princípios escorados nas regras democráticas, no reconhecimento da diversidade política, social e cultural do Estado como guardião dos direitos individuais e sociais, do patrimônio histórico e cultural e promotor do desenvolvimento inclusivo e igualitário, a Constituição Federal de 1988 foi sendo alterada, fatiada e até negada, por decisões que representam interesses políticos de grupos e que se ligam, inexoravelmente, a uma ascensão do populismo autoritário de direita.

Nossa derrota em parte significativa das batalhas se deve, a meu sentir, à principal escolha feita de nossa “arma”: a judicialização da política. O que se traduz em pedir ao Poder Judiciário as respostas para as disputas sobre a interpretação, validade, vigência e força normativa dos direitos e conquistas.

Ao escolher a judicialização como principal palco, indicamos não compreender – e é preciso reconhecer que vários teóricos e constitucionalistas como o professor Pedro Serrano da PUC/SP fazem essa abordagem – que o Poder Judiciário é um dos principais agentes do Estado de exceção, que atua como um "garantidor de direitos" até onde há uma aceitação razoável da elite e da mídia. Um liberalismo em termos. E quase em regra age para chancelar o arbítrio e garantir a manutenção de privilégios.

Não se está tratando apenas, bom que fique esclarecido, do que se refere à criminalização da política, mas de como o Judiciário age sobre a sociedade em geral, como consolida as ações policiais e do Ministério Público, por exemplo, encarcerando cerca de 40% das pessoas com ordens cautelares, sem julgamento definitivo. Ao verificarmos o recorte de raça, etário e de renda de quem ocupa nossas prisões, temos a certeza de que há método nas escolhas, já que nenhuma seletividade é feita ao acaso.

Ao mesmo tempo, desde seu conteúdo fundante, a Constituição ainda materializa, em sentido contraditório, o processo de desenvolvimento concentrador de riqueza e poder, e subordinado à acumulação capitalista em escala global. Disso decorre a presença do direito de propriedade como fundamental, no caput do art. 5º da Carta, ao lado do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança.

Some-se a tanto a permanência de elementos autoritários e conservadores impressos na própria estrutura do Estado, a dimensão outorgada aos órgãos do sistema de Justiça, com ênfase na concentração de atribuições dadas ao Supremo Tribunal Federal, que confere sustentação jurídica ao processo disfuncional que chamamos de ativismo judicial, com ações emanadas de magistrados e tribunais que adentram a esfera de outros poderes, interferindo no processo legislativo, no controle de atos administrativos vinculados, nas competências fiscalizatórias e na soberania.

A conclusão, após 32 anos, é que a Constituição Federal brasileira, com todas as suas contradições, permanece como mecanismo de luta para a busca de manutenção e expansão da integralidade dos direitos humanos, econômicos, sociais, civis, políticos, culturais e ambientais, os promulgados e os que nunca se efetivaram. Contudo, o texto cru daquele livro, já tanto adulterado, que ainda defendemos com enorme veemência diante dos arbítrios e desmontes, precisa de revisões profundas, inclusive para rever alterações feitas que são a negativa de suas premissas. Alterações constitucionais de fundo não podem mais ser apenas um discurso, são uma exigência democrática.

Ao mesmo tempo, a Constituição nada significa para a efetivação dos direitos sem que a luta social garanta as bases materiais e as condições políticas para sua consecução. São elas que precisam ser repensadas e reconstruídas.

Edição: Rogério Jordão