Paraná

Coluna

Florestan Fernandes e um país sem direitos e revoluções incompletas

Imagem de perfil do Colunistaesd
florestan fernandes
Florestan Fernandes foi mais um pensador do século vinte a defender a superação da ordem colonial, como em Cuba - Revista Práxis
Tivemos no século 19 no Brasil uma ordem colonial que se desagregou, mas que permaneceu em estament

“O estatuto colonial foi condenado e superado como estado jurídico-político. O mesmo não sucedeu com o seu substrato material, social e moral, que iria perpetuar-se e servir de suporte à construção de uma sociedade nacional”, Fernandes, em A revolução burguesa no Brasil, página 51.

 

O estudo da obra do sociólogo Florestan Fernandes é altamente provocativo e continua atual justamente por essa capacidade de apontar saídas para as organizações populares, não como receita ou modelo pronto.

Os seus apontamentos são úteis para pensarmos temas que se arrastam até hoje: sobre o caráter reativo da burguesia brasileira no que toca a defesa dos interesses nacionais; o golpe de 2016 contra o governo de Dilma Rousseff, que apresentava um plano de consolidação de nova matriz econômica, ainda é um quebra-cabeças incompleto; a presença do agronegócio exportador e destrutivo à frente do governo Bolsonaro, chocando-se contra indígenas, quilombolas, sem-terra, em nome da destruição ambiental para o agronegócio, também são visíveis.

Em obras como “A Revolução Burguesa no Brasil”, de 1973, ali está presente a reflexão sobre a sociedade de classes em um país como o Brasil, no qual o capitalismo mercantil é inserido de fora. Não possuímos um passado feudal em dissolução para ascensão das classes burguesas. A passagem do que Florestan chama de Estatuto Colonial na direção de uma Ordem Social Competitiva, que é a sociedade de mercado, teve mais permanências do que rupturas.

Teve uma aristocracia agrária e o senhor da lavoura que deu lugar a um mercado mais diversificado, a alguma modernização tardia, porém, como ensina Florestan, sem se livrar do patrimonialismo, do mandonismo, da escravidão e privilégios da sociedade estamental. O surgimento e desenvolvimento da burguesia enquanto classe no Brasil se deu de mãos dadas com a manutenção do senhor agrário, que se modernizou, mas para manter-se no poder.

A permanência da grande lavoura e sua modernização está diretamente ligada aos novos centros de poder, heteronômicos, já não apenas direcionados somente pela metrópole. Porém, com isso, dominação interna se qualificada, ao lado da dominação externa, mantendo nossa condição sem autonomia no controle de nossos processos, sem o controle do ritmo de nosso desenvolvimento marcado pelo capitalismo dependente. “O núcleo de real vitalidade econômica produzia para exportação, não para o consumo interno”, afirma Fernandes, na página 110.

Nesse sentido, o Estado, como demonstra Florestan Fernandes, não é criado sob princípios e aspirações liberais, como já vimos no artigo anterior, uma vez que a sociedade dividida em estamentos e privilégios se impõe, com uma economia mais aberta ao mercado, porém o centro de controle do poder não muda de mãos. Assim, a Revolução dentro da ordem se dá em marcos restritos. Para as classes populares segue sendo, de alguma forma, uma contrarrevolução. Não houve revolução no sentido necessário de divisão de poder e das terras, como aconteceu no processo de alguns países centrais.

Vamos ao que nos diz Florestan:

“A revolução pelos costumes teve ampla importância no contexto histórico-social da emancipação nacional. Ela fez girar a história da sociedade nacional em várias direções, já que só sob a emancipação política a ordem social e econômica de castas e estamentos, herdada da Colônia, concretizaria suas potencialidades de diferenciação e de desenvolvimento. Mas essa revolução terminou sobre seus próprios eixos, esgotando ‘a revolução dentro da ordem tradicional’ dentro dos limites dos interesses senhoriais. É que não surgiram, na cena histórica, camadas ou grupos sociais empenhados em galvanizar a ‘revolução pelos costumes’ em direções que implicassem a negação e a destruição da ordem escravocata e senhorial – pois os movimentos que ocorreram, nesse sentido, foram localizados, débeis e episódicos”, página 194.

O fato de que entre a chamada independência da metrópole e a assinatura oficial do fim da escravidão transcorreram quase sete décadas e ainda assim a força de trabalho de negros e negras não foi absorvida pelo suposto mercado livre de trabalho que se consolidava confirma como se deu uma transição no país no século 19 para o 20, lenta, brutal, conservadora.

Em resumo, tivemos no século 19 no Brasil uma ordem colonial que se desagregou, mas que permaneceu em estamentos e privilégios, na qual a classe burguesa realiza uma “revolução dentro da ordem” excluindo a maioria de uma sociedade civil que já nascia de certa forma estrangulada.

A expansão de um possível mercado interno também foi contida e marcaria a trajetória do desenvolvimento brasileiro ao longo do século vinte, questão que vemos também presente na obra de outros teóricos da dependência, como é o caso de Ruy Mauro Maurini, chegando até o debate a ser investigado sobre o impacto dos governos Lula e Dilma na expansão do mercado interno.

Fato é que, sob os arames do agronegócio e da ausência de reforma agrária em nossa realidade, um mercado interno de produção de alimentos dirigidos às massas trabalhadoras sempre foi uma demanda dos movimentos populares e não da burguesia nativa.

É inevitável ler Florestan Fernandes no marco de um pensador firme na leitura do pensamento revolucionário de Marx e Lenin, ao mesmo tempo que tempera sua análise com os clássicos da sociologia e do pensamento brasileiro e latino-americano. Florestan descreve nossa formação e consolidação de uma burguesia autocrática no Brasil no marco de um capitalismo dependente.

Com isso, remete à leitura de outro pensador latino-americano, o peruano José Carlos Mariátegui, que também identificou a particularidade do desenvolvimento do capitalismo naquele país. Se é possível uma aproximação e também um distanciamento entre o objeto de análise dos dois.

Na obra de Mariátegui, há a identificação de que a colônia não conseguiu destruir a estrutura do “ayllu”, a estrutura comunal indígena, muitas vezes mais produtiva inclusive que a velha estrutura colonial. Essa unidade potencializaria a estrutura de um socialismo com características próprias. Em Florestan Fernandes, o cenário descrito de permanência da unidade de produção da grande lavoura, com o conservadorismo e violência que isso implica, revela o desafio que as forças populares devem enfrentar, em termos de uma ordem violenta, racista, patrimonialista, desagregadora e conservadora que se mantém – até hoje! -, na estrutura de poder do Estado.

Falaremos mais sobre isso em nosso próximo encontro/artigo.

Edição: Lia Bianchini