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Democracia nem por esporte

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carol solberg
"Como cidadã, Carol não apenas pode como deve se manifestar na arena pública sempre que julgar relevante" - Créditos da foto: Reprodução
O esporte não é vizinho indesejável da política, mas uma de suas formas de expressão privilegiada

Se o neofascismo patrocinado pelo governo federal invadiu todos os terrenos da sociedade brasileira, da educação à saúde, do meio ambiente às relações internacionais, da economia ao comportamento, por que o esporte haveria de ficar de fora?

Nos últimos dias, numa sucessão que parecia um compacto dos piores momentos, Bolsonaro conseguiu puxar o ataque para mais um 7x1 contra a liberdade e a democracia.

A condenação pelo tribunal desportivo da jogadora de vôlei Carol Solberg, que se manifestou criticamente ao presidente depois de um jogo (“Fora, Bolsonaro!”), sublinhou a lei não escrita da liberdade relativa, que confunde valores universais com interesses de governo. Como cidadã, ela não apenas pode como deve se manifestar na arena pública sempre que julgar relevante.  

O que mais chamou atenção foi a decisão que reforça a tendência de fazer valer pesos e medidas diferentes. No mesmo esporte, quando o caso foi de aprovação do presidente, como fizeram os jogadores Maurício e Wallace, a leitura foi a da liberdade de opinião. Quando é de crítica, considera-se uma extrapolação dos objetivos do esporte, passível de punição e ameaça de corte de patrocínio por empresas públicas (“públicas” e não “governamentais”, bem entendido).

Numa sucessão que parecia um compacto dos piores momentos, Bolsonaro conseguiu puxar o ataque para mais um 7x1 contra a liberdade e a democracia

Se os atletas decidissem abrir mão de participação no diálogo público, não teríamos os gestos de Jesse Owen que afrontaram o nazismo de Hitler e, mais recentemente, dos atletas do basquete norte-americano contra o racismo, ou do piloto Lewis Hamilton em favor do black lives matter.

São atitudes que mostram que o esporte, com seu poder de mobilização social, não é vizinho indesejável da política, mas uma de suas formas de expressão privilegiada.

Já conhecemos bem o potencial de manipulação do esporte pelos detentores do poder. Se o exemplo mais marcante, no caso do futebol, foi a Copa do Mundo da Itália, de 1934, no auge do fascismo, outros torneios, entre eles as Olimpíadas, sempre se prestaram ao uso ideológico, da afirmação de raças superiores ao expurgo de países ou retirada de delegações como forma de protesto.

Entre nós, quem já passou dos 60 se lembra do alienante “pra frente Brasil”, retomado saudosamente por Regina Duarte em sua patética passagem pela Secretaria de Cultura.

Outro caso recente envolveu a transmissão do jogo das eliminatórias da Copa do Mundo, entre Brasil e Peru, que não foi transmitido pela TV aberta, o que se não é inédito é pelo menos muito raro. Numa queda de braço entre Globo e Planalto, não faltam desrazão nos dois lados. Não é fácil dar vitória para qualquer desses times.

De um lado, o interesse no monopólio que se tornou quase uma regra; de outro, o propósito em se vingar do que julga ser uma perseguição. Costuma-se dizer que o conflito ético é uma situação na qual os dois lados estão certos. Neste caso, o avesso da moral pública mostra como os dois times em campo podem estar errados.

No entanto, o que é mais grave é o prejuízo para o público, que deveria ser o principal ativo no caso de transmissões esportivas. O governo federal apressou-se em divulgar que a partida só seria assistida por compradores de uma assinatura de canal de streaming, de pouca circulação, valorizando o mercado da TV paga, em detrimento da empresa inimiga.

Do outro lado, a emissora global rebaixou o patamar de informações sobre a partida, deixando seu público desinformado, na mais canalha prática que prega que o que a Globo não mostra, não existiu.

Aos momentos de apagão democrático em torno do esporte se somam outros episódios em favor de manifestações de violência, esperteza e corrupção

O mais sério, no entanto, foi a prorrogação da lambança. O Ministério das Comunicações entrou em campo, mudou as regras em cima da hora (pode isso, Arnaldo?), e transmitiu a peleja pela TV Brasil. Para completar o pacote, escalou um narrador e um comentarista egressos das categorias de base do bolsonarismo. Com direito a mandar abraço para o patrão durante o jogo, num gesto nojento de vassalagem e afronta ao histórico de luta pela comunicação pública no país.

O canal, que integra a Empresa Brasil de Comunicação, foi considerado desde o começo do governo (e mesmo antes, por atos do golpista Temer) uma TV ideológica, partidária e lulista.

Não se promoveu, em contrapartida, depois da eleição, um debate sobre a natureza, função e estrutura necessária para a TV pública, usando o governo de toda a energia para acabar com ela. Extinguiu conselhos, perseguiu profissionais, acabou com programas considerados esquerdistas e estabeleceu práticas de censura ao jornalismo. Agora, na terra arrasada, medra a TV bolsonarista sem vergonha de ser chapa-branca.

Megaeventos

Outro aspecto que merece cuidado é a nova estratégia em torno do esporte, que parece ter se tornado um padrão internacional. Sai o esporte e entra o evento esportivo. Ou, para usar um termo mais apropriado, um megaevento. Nesse caminho, o esporte responde por duas inspirações fundamentais. Onde havia o jogo, a cultura, a convivência, a inclusão, a educação e a saúde, hoje se escalam os interesses extra-esportivos.

A primeira dessas dimensões é a econômica, seduzida e entregue ao projeto das grandes marcas de patrocinadores e das empresas de comunicação.  A segunda é política, submetendo decisões públicas (ambientais, de urbanismo, turismo, mobilidade e arrecadação) aos projetos de natureza financeira e ideológica. Quando o esporte entra na esteira do financiamento público e da organização da vida social, é hora de perguntar, sem espaço para ingenuidade: que sociedade estamos construindo.

O chamado “padrão Fifa”, que foi incensado durante a preparação e a realização da Copa do Mundo no Brasil, não era um apelo à qualidade. Na verdade a expressão sintetizava uma ameaça de submissão aos interesses do mercado gerado pelo torneio e uma abertura à flexibilização das leis em favor do negócio. Uma espécie de estado de exceção voluntário, assumido em prejuízo do torcedor.

A esses momentos de apagão democrático em torno do esporte se somam outros episódios que reafirmam os piores valores do comportamento humano em favor de manifestações de violência, esperteza e corrupção. Além da participação de empresas na gestão dos grandes negócios em torno do desporto, como a construção superfaturada de estádios e obras que ficariam como legados e quedam como elefantes-brancos, há prejuízos de ordem ética igualmente destrutivos.

São pessoas do meio que se aproximam do poder para colar em projetos autoritários parte de sua trajetória de sucesso, mesmo que exibam comportamentos não apenas antidesportivos, mas antiéticos. Atletas que se notabilizaram fora do campo por problemas com a Justiça, inclusive de outros países, e que se tornam embaixadores do turismo. Ou que trazem crimes hediondos em suas capivaras, mas não deixam de ter sua carreira seguida com interesse por alguns clubes, pelo menos até o rompimento dos patrocinadores que não desejam suas marcas estampando a leniência com estupro e assassinato de mulheres.

Antes do fim da partida, um grito de guerra de todas as torcidas da democracia: Fora, Bolsonaro!

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Edição: Elis Almeida