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Coluna

As eleições e sua dimensão pedagógica

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Eleger candidatos compromissados com as pautas populares, para o excecutivo ou legislativo, faz parte dos movimentos táticos necessários para se alcançar objetivos mais amplos. - Foto: TRE-SP
Limites e possibilidades da luta eleitoral na democracia burguesa.

O processo eleitoral é uma das características fundamentais dos regimes democráticos e uma importante conquista das lutas e reivindicações das classes populares ao longo da história. Antes das fundações das repúblicas modernas, os governos e casas legislativas eram constituídos exclusivamente por representantes das elites, qualquer possibilidade de representação política dos grupos subalternos era nula. Inclusive, no próprio berço da democracia ocidental, na Grécia Antiga, estima-se que o direito ao voto era exercido por apenas um quinto da população.

Mesmo após o triunfo das revoluções americana e francesa, no final do século 18, marcos para a afirmação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o sufrágio universal não se efetivou. O voto censitário, garantido apenas a homens com determinada renda, proprietários de terra, funcionários do Estado e trabalhadores de algumas profissões liberais, perdurou ainda por muito tempo durante o desenvolvimento das sociedades modernas.

Pelo mundo, destacam-se os movimentos das Sufragistas e pelos Direitos Civis dos Negros nos EUA, fundamentais para a conquista, mesmo que tardia, do voto feminino e da população afro-americana. Para se ter uma ideia, apenas em 1919 na Inglaterra, 1920 nos Estados Unidos, 1934 no Brasil, 1945 na França e 1993 na África do Sul, que as mulheres conquistaram o direito de participarem das eleições. E somente em 1965, após anos de intensas lutas, foi aprovado o Voting Rights Act (Lei dos direitos de voto) que acabou oficialmente com a legislação eleitoral racista que limitava ou impedia, dependendo do estado, a participação das população negra nas eleições dos Estados Unidos.

No Brasil, a nossa primeira constituição republicana – de 1891 – aboliu o voto censitário, mas proibia que pessoas não alfabetizadas e mulheres exercessem esse direito, ou seja, cerca de 98% da população estavam excluídas do processo. Sempre bom lembrar que durante o século 20, tivemos três décadas de regimes autoritários no país, onde o direito ao voto foi extirpado ou limitado. E que apenas em 1985 as pessoas analfabetas puderam votar pela primeira vez, no contexto dos embates pela redemocratização.


No Brasil, a nossa primeira constituição republicana – de 1891 – aboliu o voto censitário, mas proibia que pessoas não alfabetizadas e mulheres exercessem esse direito. / Foto: Vermelho.org

Essas breves referências históricas têm o intuito de ilustrar que o sufrágio universal é uma realidade relativamente nova em boa parte dos países ocidentais e que os avanços e retrocessos que envolvem esse direito está sujeito a dinâmica das lutas e correlação de forças entre as classes sociais.

Com esse raciocínio é fundamental que compreendamos o papel e a função, com seus limites e possibilidades, que as eleições possuem nos regimes democráticos burgueses, para as lutas, necessidades e reivindicações da esmagadora maioria da população. Destaco alguns:

1. Governo não é a mesma coisa que Estado. O Estado é formado por um núcleo central e coercitivo (poderes executivo, legislativo e judiciário; forças armadas e policiais) mas também por instituições e organismos responsáveis pela produção e difusão de valores e ideologias (sistema escolar; meios de comunicação; igrejas), conformando o que o pensador italiano, Antonio Gramsci, denominou de Estado integral, ou ampliado. Governos são formas de organização e gestão de um determinando regime político, que podem variar sem necessariamente haver mudanças substanciais na natureza do Estado.  O mesmo Estado burguês, por exemplo, pode ser conduzido por diferentes formas de governos, seja totalitário, hereditário ou democrático, mas sempre garantindo, em última instância, a defesa e perpetuação dos interesses e privilégios da burguesia.

2. As eleições são importantes, mas limitadas para que o povo consiga sanar suas demandas e conquistar seus direitos. Porém, mesmo que o Estado e os governos sejam conduzidos majoritariamente por quadros e representantes das classes dominantes, é importante que sujeitos e organizações da classe trabalhadora disputem e ocupem espaços da institucionalidade burguesa que podem ser decisivos para a defesa dos interesses da população, inclusive a partir do processo eleitoral. Eleger candidatos compromissados com as pautas populares, para o executivo ou legislativo, faz parte dos movimentos táticos necessários para se alcançar objetivos mais amplos. Ao mesmo tempo, essas lutas institucionais devem, necessariamente, estarem vinculadas permanentemente às lutas sociais, sob pena de reproduzirem a burocratização e o carreirismo.

3. A política é disputa pelo poder. É muito comum nos períodos eleitorais vermos discursos e posturas de candidatos, e seus apoiadores, tomados pela passionalidade. Às vezes são impulsos e descontroles forjados, mas muitas vezes não. A demagogia ou a irracionalidade que impregnam os debates nesse período acabam por dissimular a verdadeira natureza da política. Maquiavel em sua obra prima – O Príncipe – ainda no século 16, sintetizou e demostrou que para além dos maniqueísmos e idealismos de todo tipo, a política é a arte pela conquista e manutenção do poder. Nesse sentido, a luta política exige muita racionalidade, estudo científico da realidade e construção de força, sendo as eleições apenas um dos vários lances de um jogo de xadrez de longa duração.


As eleições são importantes, mas limitadas para que o povo consiga sanar suas demandas e conquistar seus direitos. / Foto: AL-ES

Em países como o Brasil, o Estado é ainda mais blindado e averso à participação e incorporação das demandas dos trabalhadores. Por isso, o sociólogo Florestan Fernandes afirmou que aqui nem mesmo uma democracia burguesa tradicional se instaurou plenamente, mas sim um regime autocrático, em que a burguesia, com o uso ininterrupto da violência e a estratégia da contra revolução permanente mantêm seus privilégios praticamente intactos.

A eleição em curso, independente do resultado, assim como a de 2018, deveria nos ensinar alguma coisa. Infelizmente, mesmo após o golpe de 2016, as forças democráticas e de esquerda parecem não ter levado a sério o perigo do avanço dos grupos e ideias da extrema direita, com sua agenda e pautas discriminatórias e fundamentalistas. Assistimos a continuidade da fragmentação de candidaturas e coligações que poderiam ter construído articulações unitárias para resistir e disparar um contra ataque à ofensiva radical do bolsonarismo e seus aliados.

Por fim, as eleições tem, inexoravelmente, uma dimensão pedagógica. A possibilidade do diálogo com grupos e setores da sociedade que muitas vezes estão alheios ao debate político, a construção de propostas que apontem para os problemas concretos do povo e a própria denúncia dos limites e entraves das instituições estatais, são essenciais para se vislumbrar a edificação de uma democracia  realmente participativa e popular.

Edição: Monyse Ravena