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Elevar o monstro e retirar a escada

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"O golpe de 2016 e o período tampão – mas nem tanto – de Michel Temer foi uma espécie de ensaio para a jogada final da destruição da democracia no Brasil" - Créditos da foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Bolsonaro é do tamanho da história de suas indignidades

Há um clima de hipocrisia no ar. De uma hora para a outra, parece que Jair Bolsonaro atravessou uma fronteira imaginária e se tornou uma aberração. No entanto, a besta já estava lá, há pelo menos 30 anos, sem tirar nem pôr. Quem se assusta com as declarações e grosserias do presidente ou não tem memória em dia ou mente para a própria consciência. Bolsonaro é do tamanho da história de suas indignidades.

Com um ar de aturdimento e revolta que beira a desfaçatez, os capitães da grande imprensa, o empresariado “civilizado”, o aparato jurídico-policial e os políticos que se autodenominam “de centro” buscam se afastar da situação que criaram. Tentam retirar a escada posta por eles mesmos, como se não tivessem responsabilidade pelo seu uso e ascensão do fascismo que nos define, diminui e constrange frente ao mundo.

O golpe de 2016 e o período tampão – mas nem tanto – de Michel Temer foi uma espécie de ensaio para a jogada final da destruição da democracia no Brasil. Um xeque ilegítimo a que se seguiu o xeque-mate anticivilizatório. A imprensa, o empresariado, a Justiça de classe e as instituições políticas e seus atores puderam experimentar de forma desabusada o arbítrio, iniciando o processo de atravessamento da boiada pelo desmonte do Estado social, até chegar ao ponto em que nos encontramos.

Hipocrisia: imprensa, empresariado e políticos buscam se afastar da situação que criaram

Com o apoio devotado a Bolsonaro, a estratégia pode não ter sido a ideal. Afinal, era preciso receber no mesmo pacote as contingências indesejáveis da mediocridade humana, da vizinhança com a criminalidade miliciana, da submissão aos militares não confiáveis. Sem falar do negacionismo científico, do preconceito em todas as escalas, da indigência intelectual, dos maus modos e do retrocesso em temos culturais. Era um Temer piorado, mas trazia o cacife da eleição.

Nada, no entanto, que fizesse sombra ao que de fato interessava: a destruição do governo popular e de seu partido e lideranças, abrindo o caminho para conciliação pelo alto no campo econômico, num acordo entre os interesses do mercado financeiro e o retrocesso no âmbito dos direitos sociais. Estava dada a chave: a retomada do Estado em nome de interesses do mercado, com o horizonte inevitável de adestramento do presidente a médio prazo. Foi onde o horror suplantou a fantasia.

Elegeram Bolsonaro não apesar dele, mas pelo que ele representava

Todos que contribuíram para a composição desse jogo e que hoje alardeiam sua distância em relação a ele não podem se esconder de seus intentos originais. Elegeram Bolsonaro não apesar dele, mas por tudo que ele representava. O condomínio do poder, atravessado por autoritarismo, militarismo, fundamentalismo, ignorância e entreguismo não é resultado de uma usurpação, mas da confirmação de um projeto. Uma dose cavalar de regressão política, sócia e econômica, com suaves efeitos adversos no campo dos costumes.

Quem compartilha, ainda que de esguelha, o projeto em curso no país, não pode esperar compreensão ou redenção, sequer pelo esquecimento ou tolerância. Não se serve a dois senhores: civilização ou barbárie. Eleitores, partidários, parceiros, simpatizantes e até mesmo simples acólitos e baba-ovos estão como o pequeno príncipe, eternamente responsáveis pelo que legaram ao país. Com o jornalismo burguês tocando bumbo à frente.

A falsidade da impresa

A imprensa comercial talvez seja a mais falsa e reticente de todas as forças do atraso. Depois de um comportamento partidário na campanha presidencial, mesmo sob ataque explícito a seus fundamentos, se esquivou de adotar uma linha comprometida com o restabelecimento da ordem democrática fraturada desde o primeiro instante por Bolsonaro. Em todos os momentos, quando exibia sua indignação, era sempre ancorada por fontes que representavam seus interesses, fugindo da confrontação real com os crimes que se cometiam em sequência sob seus olhos e ouvidos.

Em primeiro lugar, dividiu o governo em alas, ao modo de uma escola de samba, como se de um lado estivesse a razão e de outro o desvario. Assim, apoiou as reformas trabalhista e da previdência, amparou a falta de planos de Guedes, tratou com irrelevância a destruição do meio ambiente (mais uma vez dividindo a realidade entre os interesses legítimos do mercado e as fanfarronices de Salles). Quando era preciso retificar alguma discordância, havia sempre um analista do mercado, um Maia, um ex-FHC para chamar de seu.

Em seguida, liberou no varejo a crítica à estupidez pessoal do governante, ao ataque à liberdade de expressão e às fake news como estratégia de comunicação. Foi um caminho que permitiu confrontar o governo sem discordar de seus encaminhamentos mais amplos.

Lideranças com milhões de votos, partidos de esquerda e movimentos sociais foram mantidos no silêncio obsequioso. Nomes que ajudaram a eleger Bolsonaro, depois de figurarem como a voz do dono em colunas e comentários personalistas na defesa dos pilares do neoliberalismo, agora são convocados a cumprir o papel de guardiões da sanidade e dos bons modos.

Justiça calçou o projeto eleitoral com julgamentos questionados em todo o mundo civilizado

O presidente só é ruim quando é grosso e deve ser atacado pela grosseria, não por suas posições explicitamente fascistas. O projeto liberal da economia brasileira não precisa sequer do liberalismo político como fachada, como Guedes parece garantir com seu lastro em Chicago e Pinochet. Portanto, é possível condenar o presidente sem tocar nos fundamentos de seu projeto de poder. 

Tardiamente, até mesmo para manter o mínimo de coerência, resgatou-se no noticiário a qualificação de extrema direita, que ficou em banho-maria durante a eleição. O importante era manter a indistinção, como se tratasse de uma disputa de iguais, embora adversários.

Agora, para distinguir Bolsonaro de Moro (ou outro egresso do governo e de sua base de apoio), as categorias da ciência política passaram por uma conveniente revisão. O julgamento deixou de ser ideológico para ser moral.

Militares, juízes e políticos igualmente responsáveis

Mas não foi apenas a imprensa que apostou mal e agora quer recuperar as fichas na marra. Militares mostram a cada dia que não são mais racionais que submissos, abrindo um cisma entre a ativa e os oficiais de pijama. Políticos conservadores elevam seu fisiologismo a patamares nunca vistos em disputas por cargos que convocam pessoas servis e desclassificadas.

Parte importante dos juízes e operadores da Justiça consagraram sua herança histórica em legitimar o poder acima das instituições, como fizeram em outras ditaduras, somando a esse passado a novidade sempre solerte do lawfare. O bloco do poder, como se vê, não é um acaso, mas uma obra de engenharia política feita de ambição e compartilhamento.

Ao assumir a função em setores para os quais não estão preparados, como a saúde pública, as Forças Armadas abriram flanco para irresponsabilidade e a pior condução da pandemia em todo o mundo, mesmo com o legado benfazejo do SUS. Assinam embaixo de protocolos descabidos, tentam inviabilizar pesquisas, corroem a legitimidade de agências conceituadas. Contribuem para a curva de mortes, para a desinformação, para a ausência de um comando unificado. Espalham balbúrdia.

Os representantes políticos em todos os níveis fizeram da servidão voluntária sua única forma de relacionamento com o governo federal, emasculando o republicanismo e a independência dos poderes. Nem mesmo o Centrão, outrora um combinado pragmático de interesses, sustenta a mínima funcionalidade das casas legislativas, entregues a uma agenda antipopular e ao impedimento da pauta do impeachment do presidente, que coleciona pedidos profundamente motivados por crimes sucessivos em todas as esferas do direito.

Não são melhores que o pior deles, que tanto nos envergonha. Talvez sejam seu complemento necessário.

A Justiça brasileira calçou o projeto eleitoral com julgamentos questionados em todo o mundo civilizado, deu guarida a julgamentos manchados de partidarismo e enfraqueceu instâncias que vão do Ministério Público à Polícia Federal, chegando aos tribunais superiores. Pessoas se apresentam para funções que deveriam estar sob o domínio das leis e da Constituição, para cumprir mandatos de engavetadores e peticionários do interesse familiar do presidente.   

Tentar sair da estrada da ignomínia, nesse momento, é apenas mais uma manifestação de indigência moral e covardia. Não se pode respeitar ou aceitar o título de resistente de qualquer setor ou de servidor público a quem foi nomeado pelo atual governo para cumprir um desígnio de exceção e violência, sabendo o que fazia e a que propósito se aliava. Não são melhores que o pior deles, que tanto nos envergonha. Talvez sejam seu complemento necessário.

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Edição: Elis Almeida