Minas Gerais

NOVEMBRO NEGRO

“Rádios hegemônicas não têm preocupação em levar informação para o povo”

Em entrevista, Adenilde Petrina, de Juiz de Fora (MG), conta sobre experiências de comunicação e luta na periferia

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
Adenilde petrina
Só vai haver democracia no país quando houver a democratização dos meios de comunicação - Créditos da foto: Twin Alvarenga

A liderança comunitária e integrante do coletivo Vozes da Rua, Adenilde Petrina tem experiência nos movimentos populares desde a década de 1970, quando foi morar no bairro Santa Cândida, periferia da cidade de Juiz de Fora, na Zona da Mata de Minas Gerais.

A “militância por necessidade” começou na associação de bairro e chegou na luta pela democratização da comunicação. Adenilde foi uma das responsáveis pela rádio comunitária Mega FM, fundada em 1997, que ficou no ar por 10 anos, até ser fechada pela Anatel. Com inspiração em iniciativas como a da Rádio Favela, de Belo Horizonte, a Rádio Mega chegou a 70% da cidade com uma programação diversa e plural, do rock pesado aos programas religiosos.

Os poderosos não querem que a gente se informe

Hoje, a rádio é tema de tese, dissertação, monografia e artigos de revista. Mas antes disso, é uma experiência esperançosa de organização social, de comunicação popular na periferia, de formação e luta do povo negro. Confira a entrevista com Adenilde, que é Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora, título recebido em nome da comunidade.

Brasil de Fato MG – A senhora começou sua militância política ainda na década de 1970. Como que isso aconteceu?

Adenilde Petrina – Comecei com 18 pra 19 anos, aqui no bairro Santa Cândida. Na época, aqui não tinha água, luz, esgoto, calçamento, nem casas direito. A gente tinha que buscar água muito longe, e andava muito. A maioria da população trabalhava e quando chegava à noite ia buscar água e tinha que subir um morro danado.

A dona Aparecida começou um movimento para pedir as autoridades melhorias para o bairro e assim eu resolvi participar. Fui secretária da Sociedade Pró Melhoramento do bairro Santa Cândida (SPM).

A militância começou por necessidade, de todas nós daqui bairro. A maioria das pessoas que estavam no movimento eram mulheres. E foi muita luta para conseguir o que a gente queria. Primeiro conseguimos a luz em uma parte do bairro, tivemos que lutar para ter luz na outra parte.

Tocamos a rádio no braço, era nós por nós, sem nenhum recurso

Conseguimos água e calçamento e aí ficou faltando a escola, porque todo ano era uma dificuldade para matricular as crianças. As mulheres dormiam nas filas quando chegava a vez delas, não tinha mais vaga.

A gente lutou bastante e conseguimos um terreno e a escola foi construída em 1985, depois que já tinha acabado a Ditadura Militar, quando teve o primeiro governo eleito democraticamente, entre aspas, porque a democracia não chegou nas periferias. Ganhamos o terreno e a prefeitura construiu, inicialmente, duas salas e na medida da necessidade foi aumentando.

Hoje a escola do nosso bairro é nosso orgulho porque, é uma escola muito respeitada pelos projetos que desenvolve junto com a Universidade Federal de Juiz de Fora. Depois o pessoal quis a igreja para poder fazer catecismo, reuniões e assistir as missas. Conseguimos o terreno e também a construção foi feita.

Por que a senhora afirma que a democracia não chegou até as periferias?

A periferia na época era invisibilizada, tanto é que Carolina Maria de Jesus, que é uma escritora que a gente valoriza muito, escreveu nos anos 1960, um livro em que ela fala que a periferia é o quarto de despejo da cidade. É uma comunidade que não existe, só existe como um lugar em que você vai, pega o que precisa e depois não dá importância.

E mais para frente, estudando o Frantz Fanon, “Os condenados da terra”, a gente percebeu que existem duas cidades, a cidade negra, que são os bairros e as periferias, e a cidade branca, que é o centro e os bairros de luxo.

Rádio é igual as capitanias hereditárias, pertencem a poucos da elite

Aí a gente questiona que democracia é essa. A periferia é procurada de quatro em quatro anos, e durante os quatro anos seguintes, vive de qualquer maneira. A cultura hip hop, nos anos 1980, nos tirou da invisibilidade.

Passamos a existir, mas os problemas continuaram os mesmos: o racismo, a violência, o descaso das autoridades, a ausência de políticas públicas, falta de saúde e educação de qualidade. Como o Fanon falou, nós continuamos colonizados e tudo o que a gente recebe é de segunda classe.

E no Santa Cândida vocês criaram a Rádio Mega.

Aqui no bairro tinha o DJ Nonô que possuía uma equipe de som chamada Space Lab. Ele fazia baile black nas periferias de Juiz de Fora e durante a semana, junto com o grêmio estudantil da escola Cândido Motta Filho, ele fazia uma programação de rádio escola no recreio dos alunos na parte da noite.

Conversando com ele, surgiu a ideia de montar uma rádio comunitária para tocar as músicas dos artistas da periferia e as que eles gostavam. Assim começou a movimentação para criar a Rádio Mega.

Rádio comunitária é um aglutinador de pessoas e disseminadora de ideias

O povo da comunidade, no principio, ficou meio reticente, mas aderiu à ideia e assim a gente conseguiu um abaixo assinado que autorizava a rádio comunitária no nosso bairro, que entrou no ar no dia 19 de julho de 1997.

A população apareceu na assembleia para decidir a programação e, como era muita gente, o horário foi fatiado de uma em uma hora para que todo mundo pudesse participar e fazer o seu programa.

E como era a programação da rádio?

Na assembleia, ficou definido que a rádio era pra levar informação, conhecimento, consciência, educação e ser uma ponte para a fraternidade dentro da comunidade e em outras comunidades que ela conseguisse chegar.

Para a programação, cada um escolheu o que queria e apareceram vários tipos de gostos, como samba, sertanejo raiz, pagode, rock n’roll nas suas várias tendências. Tinha também programas da igreja, mas era tudo plural, tinha a linha da teologia da libertação, renovação carismática, programa espírita, de umbanda, candomblé, de esoterismo também.

Tinha programa dos movimentos sociais da cidade, do movimento negro. Tinha um muito importante que foi o Voz D’África, que falava sobre África, porque ninguém conhecia. A gente fez uma pesquisa no bairro para saber o que o pessoal sabia sobre a África e a maioria só sabia que lá tinha zebra, leão e que tinha muita fome.

Os poderosos não querem que a gente se informe para não lutar pelos nossos direitos

O programa, a partir dessa pesquisa, falava que a África era um continente, como o europeu, o americano e o asiático; que tinha 54 países, línguas diferentes, culturas diferentes, música, arte, culinária. O programa tratava da história da África e dos negros no Brasil. A gente também tinha um programa indígena que chamava Potirõ, que era produzido pelo Conselho Indigenista Missionário.

Tinha um programa de mulher, que foi super importante, porque despertou na mulherada aqui do Santa Cândida a consciência de que a mulher tinha um lugar na história e direitos que a gente não conhecia. E foi muito bom a tomada de consciência que não éramos objeto, não tínhamos que sofrer violência.

A gente foi tomando consciência que não era propriedade de um homem da casa. O programa do movimento gay chamado Diversidade tratava da questão LGBT e isso também foi bom pra Santa Cândida porque acabou com o preconceito e uniu todo mundo na mesma luta, descobrimos que estamos todos no mesmo barco.

Outro programa interessante, que a gente chamava de assombração, o Pega Fenômeno, falava do extraordinário, de fantasmas, ufologia. A gente pesquisava no bairro os causos de assombração e transformava essas histórias em novelas. E toda sexta-feira, à meia-noite passava na rádio. O pessoal gostava bastante.

E o hip hop?

A cultura hip hop ocupava uma boa parte da programação da rádio e era feita por jovens, que tomavam conta da rádio durante a semana. E no fim de semana eram os mais velhos. Dos programas de rap na Mega, o movimento hip hop começou a se rearticular na cidade, porque já existia, mas tinha saído de cena.

Com a rádio, foram criadas várias posses, a primeira foi a posse de cultura hip hop Antônio Conselheiro. Aí essas posses tinham pessoas de várias comunidades, de onde a rádio chegava. O pessoal se ligava no hip hop e vinha na rádio para conhecer quem fazia os programas. Depois, veio a posse Zumbi dos Palmares e aí a gente tinha um trabalho de levar a cultura hip hop nas escolas.

E a partir daí, dentro da rádio, foi criada o evento Agosto Negro, em 2003. Nesse evento, a gente discute assuntos interessantes para cultura negra e para a raça negra. A gente estuda por uns dois meses e depois sai durante o mês de agosto nas escolas levando aquilo que a gente estudou.

O primeiro Agosto Negro teve como tema a informação como o quinto elemento da cultura hip hop. Nesse tema, a gente falou sobre saúde, racismo, preconceito contra os homossexuais, contra as mulheres. E aí não parou mais. O último Agosto Negro, por causa da pandemia, foi feito online.

E como foi tocar uma rádio comunitária sem recurso por tanto tempo?

A gente tocou essa rádio no braço mesmo, era nós por nós, praticamente sem nenhum recurso. A rádio funcionava em um cômodo aqui em casa, então a gente não cobrava luz nem água nem nada, porque a família toda participava de movimento social.

E aí cada um trazia seus CDs, seu material de trabalho, porque a rádio não tinha.  E os equipamentos eram emprestados e todo mundo contribuía com a vontade. A gente fazia reunião de dois em dois meses, cada um chegava com o lanche, que era comunitário, e assim a gente foi vivendo. Quando tinha problema no transmissor, era de forma comunitária que a gente resolvia.

E rádio foi fechada em 2003.

A Anatel teve aqui, levou nosso transmissor, mas nós conseguimos outro e funcionamos até 2007, quando a gente sofreu mais ameaças. Foi quando a gente resolveu encerrar as atividades da rádio, mas continuamos com a cultura hip hop, com o Agosto Negro.

Até chegar em 2013 quando a gente criou o coletivo Vozes da Rua, para cumprir com os mesmos objetivos da Rádio Mega, que era levar informação, conhecimento, cultura hip hop e ser uma ponte para fraternidade entre as comunidades e os jovens da nossa periferia.

Imagino que vocês devem ter sofrido muito quando a rádio foi fechada.

Sofremos sim, ficamos indignados, porque a gente foi processado, condenado, mas o advogado que nos defendeu de graça mostrou que a gente não tinha interesse de ficar rico ou de ganhar dinheiro com a rádio. Nosso interesse era dar voz aos movimentos sociais e às pessoas das comunidades.

Nós pagamos serviços comunitários, pagamos cestas básicas durante um tempo, a gente não podia sair da cidade, mas a rádio não saiu do ar, porque nós conseguimos o outro transmissor. Depois é que não deu mais. Foi uma barra muito grande.

Só que nas nossas reuniões, a gente discutia sobre conseguir uma concessão, a gente até tentou em 2001, mas não conseguiu e continuamos a funcionar assim mesmo. E nas reuniões a gente falava que a qualquer hora a rádio poderia ser fechada, e que a gente tinha que fazer nosso trabalho de uma maneira que depois da rádio fechada, a gente não ficasse com remorso de não ter feito o que deveria.

O que leva ao fechamento de uma rádio comunitária, é a força que tem dentro das comunidades 

Então a gente sentava a pua mesmo, sentava o cacete nas autoridades, falava tudo o que a gente queria, denunciava o que tinha de denunciar, falava dos problemas da comunidade, dos problemas do país, metia o cacete na televisão que não nos representava.

A gente sente sim muita falta da rádio, mas temos a sensação de dever cumprido. Fizemos tudo que uma rádio, em nossa opinião, deveria fazer, que era ser voz da comunidade, da periferia, levar informações, formar e alfabetizar o olhar das pessoas para mídia hegemônica.

E por que não conseguiram a concessão?

A gente fez tudo direitinho, de acordo com o manual para conseguir a concessão. A dona Maria e a Taís foram para Belo Horizonte levar o material que a gente reuniu, daí o moço que recebeu a gente, que eu não me lembro do nome, mas era ele quem ia fazer a inscrição da rádio, perguntou se a gente tinha padrinho político.

A gente respondeu que não, porque nossa rádio era plural e política, mas não no sentido de partido político. Ele respondeu que por isso a gente já tinha perdido a concessão. E perdemos mesmo. Isso foi por volta de 2002.

Em 2007 a gente nem tentou mais, porque quando a Anatel fechou a rádio, ela cobrou uma multa imensa. E a gente não tinha dinheiro e nem condição de pagar, nem se todo mundo juntasse tudo o que ganhava não ia dar. O encarregado de fazer o arresto dos bens da rádio chegou, mas não tinha nada mais, porque a gente tinha devolvido tudo.

Ele disse na época, que ia cobrar da diretoria. Nós ficamos apavorados, fomos na ouvidoria, e o ouvidor explicou que o Lula tinha assinado uma lei que parcelava a dívida das rádios comunitárias e até perdoava uma parte. E nós esperamos três meses para essa lei sair no Diário Oficial, aí pagamos 20 prestações de R$ 140. Fechamos tudo e guardamos os documentos para história.

A perseguição às rádios comunitárias acontece até hoje. Como a senhora vê isso?

A gente estudava muito isso dentro da rádio, porque tem uma professora da universidade que dá aula de comunicação comunitária e participava da rádio com um programa de mulher. Ela discutia muito com a gente a questão da comunicação no Brasil.

Então a gente ficou sabendo que a rádio é igual as capitanias hereditárias, que pertenciam a poucos donos, que são da elite. A elite tem a voz e a gente não tem. As rádios hegemônicas não têm preocupação em levar informação para o povo, pelo contrário, elas desinformam as pessoas.

E a Rádio Mega surgiu para isso mesmo, para levar informação. Acredito que por a gente viver em uma sociedade de classes, os poderosos não querem que a gente se informe para não lutar pelos nossos direitos.

O Agosto Negro foi criado em 2003 para discussão da cultura negra

O que levou ao fechamento da nossa rádio, e de outras tantas no Brasil, foi por causa da força que tem uma rádio dentro das comunidades, da força de organização. E posso atestar essa força porque todo mundo que escutava a nossa rádio sabia muito bem discernir uma informação que era dada pela mídia hegemônica daquela que era dada pelos moradores da comunidade.

Que são os intelectuais orgânicos que participavam da rádio e levavam as informações do ponto de vista deles. A rádio era a voz das pessoas que não tinham direito à fala e nem de mostrar sua arte, sua inteligência e capacidade para a sociedade. A rádio comunitária é um aglutinador de pessoas e disseminadora de ideias.

A senhora fala sobre essa relação entre a rádio e informação com movimentos populares. Infelizmente, muitos movimentos ainda não valorizam a comunicação como estratégica na disputa de poder. Como a senhora avalia isso?

Acredito que os movimentos sociais não perceberam ainda que a democracia não chegou nas classes populares, nos morros e nas periferias do Brasil. Os movimentos não se deram conta da importância da informação e não refletiram que a sociedade só será democratizada quando houver a democratização da informação.

Só vai haver democracia no país quando houver a democratização dos meios de comunicação. E a própria mídia domina, é igual o Mano Brown falou, a mídia é pior que uma droga, todo dia está nas casas alienando as pessoas.

E para melhorar a comunicação com as periferias, o que é mais urgente?

A gente tem que discutir com as pessoas. Seja por meio do teatro, da conversa, a criação de jornaizinhos, fanzines pra distribuir na comunidade. Igual a gente fazia o “Se liga” que era distribuído pela cultura hip hop, com notícias que tinham no máximo quinze linhas, em uma linguagem bem fácil que o pessoal podia ler no ônibus, se inteirar e depois buscar mais informação.

Acredito que além de esclarecer a população sobre a importância do conhecimento, a gente deve criar veículos para poder levar a informação pra toda comunidade.

A internet eu acho super importante mas, como a maioria dos moradores das periferias ainda não tem internet, pelo menos aqui no nosso bairro, para nós é meio difícil. E só uma minoria que vai aproveitar. Então a gente tem que buscar outras maneiras de levar informação.

Agosto Negro é uma. A gente vai para a rua, vai paras as praças, para as escolas, levando uma pauta sobre racismo, história dos negros, da África. A gente sabe que acabar com o racismo é difícil, porque para isso tem que acabar com o capitalismo. Para a gente chegar lá temos que ver que o racismo é um problema para toda a sociedade, não só para nós negros.

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Edição: Elis Almeida