Ceará

Coluna

A peleja de Padre Cícero com os donos do céu

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Numa noite, de 1º de março de 1889, ocorreu o primeiro episódio de transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo. - Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte
Deus sairia da Europa para fazer milagres no agreste?

Dois motivos me levam a escrever sobre esse tema. As provocações ensejadas pela leitura recente da biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, do escritor cearense Lira Neto (Editora Companhia das Letras) e o aniversário de 150 anos de ordenamento do personagem em tela. No dia 30 de novembro de 1870, Cícero Romão Batista conclui seus estudos e preparações para torna-se padre, no seminário da Prainha, em Fortaleza.

Numa noite, de 1º de março de 1889, ocorreu o primeiro episódio de transformação da hóstia em sangue na boca da beata Maria de Araújo, comungada diretamente das mãos de Padre Cícero, na então aldeia de Juazeiro, localidade vinculada ao município do Crato, na região sul cearense. Episódio que se repetiria outras dezenas de vezes, meses a fio, sob o testemunho da humilde população local e de autoridades políticas e religiosas do Cariri.

Após a repercussão de tal fenômeno, inclusive em jornais da capital Rio de Janeiro, o bispo de Fortaleza, Dom Joaquim, após trocas constantes de correspondências com Padre Cícero e com a Nunciatura do Vaticano no Brasil, localizada em Petrópolis, mesmo com um ceticismo já anunciado e irrevogável, envia dois de seus mais confiantes auxiliares para as terras longínquas de Juazeiro. Os padres Clycério da Costa Leite e Francisco Ferreira Antero formam uma comissão especial junto com os médicos Marcos Rodrigues Madeira e Ildefonso Correia Lima, além do farmacêutico Joaquim Secundo Chaves, que tinha como tarefa a elaboração de um relatório sobre a situação, já fora de controle, para que a Igreja pudesse emitir um parecer definitivo sobre o assunto e encerrar o caso. Para o desgosto do bispo, em 13 de outubro de 1891, o seleto grupo encerrou os trabalhos de pesquisa com uma conclusão que não impressionou Padim Ciço e seus seguidores, sentenciando não haver explicações científicas e naturais para o ocorrido. 


Em 2015, a Santa Sé, sob o atual comando do Papa Francisco, anunciou a reconciliação de Padre Cícero com a Igreja Católica. / Foto: Fundaj

A hipótese, já assimilada como verdade por milhares de romeiros, coronéis, camponeses, comerciantes, jagunços, poetas e cangaceiros em todo o sertão nordestino, de que tratava-se do sangue de Jesus Cristo sendo derramado sobre aquele solo sofrido nos rincões do planeta, converte, definitivamente, o padre caririense em Santo popular e, não menos importante, num dos principais líderes políticos do estado, tornando-se anos mais tarde o primeiro prefeito do futuro município e vice-presidente do Ceará, após liderar a Sedição de Juazeiro junto com seu amigo e braço direito, Floro Bartolomeu.

Após a recusa peremptória do relatório, Dom Joaquim passa a desferir uma violenta campanha de críticas e sanções a Padre Cícero, além de pressões e perseguições aos membros da Igreja que alimentavam alguma simpatia pelo mais novo santo. Uma frase histórica atribuída ao sacerdote francês Pierre-Auguste Chevalier, ex-reitor do seminário em que Cícero Romão Batista formou-se, sintetiza bem o modo como a cúpula da Igreja Católica Apostólica Romana tratou o caso do milagre de Juazeiro: “Deus sairia da Europa para fazer milagres no agreste”?

Tal indagação expressa de forma cristalina a ideologia eurocêntrica, reproduzida ao longo do tempo como a visão de mundo legítima para a compreensão e o julgamento da realidade e da história, atribuindo uma valoração negativa as experiências e ideias gestadas em países e locais considerados periféricos ou atrasados. E foi com essa convicção que os acontecimentos de Juazeiro foram interpretados pelo Vaticano.

Gente fanática e supersticiosa, assim eram tratados os fiéis e defensores das mensagens enviadas por Deus e Nossa Senhora pela boca de uma mulher negra e analfabeta e pelas palavras de um padre sertanejo e maltrapilho.

Ao Santo popular, não restava outra alternativa senão ir pessoalmente à cidade sagrada, coração e cérebro da instituição a que devia submissão e lealdade, para tentar reverter as punições que a ele foram impostas. Mas, principalmente, suplicar para que o Santo Ofício ou o próprio Papa determinassem uma investigação isenta acerca dos fenômenos sobrenaturais de Juazeiro. Segundo Cícero, ele e seu povo não tinham nada a esconder, muito pelo contrário.

Foram cerca de seis meses de enrolação no Vaticano. Após audiências evasivas e promessas não cumpridas, o maior crédito dessa longa estadia na Itália foi um rápido encontro entre o simples pároco e o poderoso Papa Leão XIII, relembrado pelo sacerdote cearense como um momento único em sua vida. Porém, nada de comissão para averiguar os supostos milagres, nem mesmo um perdão à rebeldia do padre sertanejo. Certamente, para o representante de Deus na terra, Juazeiro não era merecedor da visita e das graças de seu chefe supremo, pela distância ou por sua irrelevância.  

Na volta ao Brasil, restou a Cícero, Maria de Araújo e seus seguidores a paz dos cemitérios. A proibição de fazerem qualquer menção ou propaganda aos fenômenos sobrenaturais e aos paninhos ensanguentados, o isolamento da beata milagreira de sua vida social e religiosa, o impedimento do padre de conduzir missas e exercer outras funções sacerdotais, além da vigilância permanente de Juazeiro pelos olhos atentos da Diocese de Fortaleza, não impediram o crescimento dos devotos e a confiança de que aquele pequeno lugarejo era sim a Nova Jerusalém, a despeito do arbítrio, ameaças e desdém das autoridades e instâncias da Igreja Católica.


No dia 30 de novembro de 1870, Cícero Romão Batista conclui seus estudos e preparações para torna-se padre, no seminário da Prainha, em Fortaleza. / Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte

Padre Cícero tinha certeza e demonstrou isso em seus argumentos, mesmo que discretamente, que se os fenômenos ocorridos naquele chão rachado tivessem acontecido no interior da França, da Itália, de Portugal ou de outro país ao norte do equador, teriam tido outro tratamento. E não taxados como alucinações de um povo ignorante e miserável, manipulados por um astuto político de batina.

A pena capital ao padre septuagenário foi proferida em 1916, dezoito anos antes de seu falecimento, quando novamente o Santo Ofício, carregado de provas e amarguras, determina sua excomunhão. Sentença que o sacerdote herege nunca teve conhecimento, devido a decisão pessoal do então bispo do Crato, revertida logo em seguida, após apelação do mesmo ao Vaticano. 

Em 2015, após anos de negociações e articulações, a Santa Sé, sob o atual comando do Papa Francisco, anunciou a reconciliação de Padre Cícero com a Igreja Católica, primeiro passo para o tão sonhado processo de beatificação. Os próximos capítulos dessa novela ainda estão em aberto, mas se depender da devoção dos fiéis e da habilidade do primeiro sumo pontífice não europeu, nesse contexto de disputas cada vez mais acirradas no interior do mundo cristão, poderemos assistir a uma reviravolta em seu desfecho.

*Título do artigo livremente inspirando no título do disco "A peleja do diabo com o dono do céu" (1979), do músico paraibano Zé Ramalho.

Edição: Francisco Barbosa