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Papo esportivo | Jogadores do PSG e Instabul deram recado: racismo não será tolerado

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Jogadores do Paris-Saint Germain e do Istanbul Basaksehir deixaram o gramado depois que o quarto árbitro da partida proferiu ofensas racistas - Reprodução / Facebook / UEFA Champions League
O que vimos lá em Paris foi o início de um processo que já deveria ter começado há muito tempo

O dia 8 de dezembro do difícil ano de 2020 ficará marcado para sempre como o dia em o futebol começou a vencer o racismo. É verdade que a caminhada ainda é longa e repleta de passadores de pano que ainda teimam em justificar o intolerável com uma infinidade de argumentos vazios. Mas essa data já entrou para a história do esporte.

Foi na última terça-feira (8) que os jogadores do Paris-Saint Germain e do Istanbul Basaksehir deixaram o gramado do Parque dos Príncipes depois que o quarto árbitro da partida (o romeno Sebastian Colţescu) proferiu ofensas racistas contra o camaronês Pierre Webó, ex-atacante e membro da comissão técnica da equipe turca. A partida era válida pela última rodada da fase de grupos da Liga dos Campeões da UEFA.

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Tudo começou quando o lateral brasileiro Rafael (do Istanbul Basaksehir) foi punido com cartão amarelo, fato que gerou muita reclamação da comissão técnica do escrete turco. De acordo com jornalistas romenos, Sebastian Colţescu chamou o árbitro (o também romeno Ovidiu Hategan) e pediu punição a Pierre Webó usando as seguintes palavras: “Aquele preto ali. Vá lá e verifique quem é. Aquele preto ali. Não dá para agir assim”.

Webó se revoltou e questionou a atitude de Sebastian Colţescu, mas acabou sendo expulso da partida (sendo que nem no banco de reservas ele estava). A partir daí, o que se viu foi a revolta completa das comissões técnicas das duas equipes com relação à atitude do quarto árbitro. O senegalês Demba Ba (jogador do Istanbul) foi flagrado pelas câmeras questionando fortemente Sebastian Colţescu: “Você nunca diz ‘esse cara branco’, você diz ‘esse cara’. Então por que você está mencionando ‘cara preto’? Você tem que dizer ‘esse cara preto’? Por quê?”, afirmou o atleta ao quarto árbitro.

Além de Demba Ba, a transmissão oficial da UEFA também flagrou o francês Mbappé e o brasileiro Neymar deixando claro para o árbitro Ovidiu Hategan que não voltariam para o jogo, caso o quarto árbitro Sebastian Coltescu continuasse em campo: “Não vamos jogar. Não podemos jogar. Com esse cara aqui, não vamos jogar”.

Depois de uma longa indefinição (e de uma falta de sensibilidade absurda com relação ao ocorrido no Parque dos Príncipes), a UEFA remarcou o confronto entre Paris Saint-Germain e Istanbul Basaksehir para esta quarta-feira (9) no mesmo local mas com um trio de arbitragem diferente e também anunciou uma investigação sobre o caso.

O que menos importa aqui é o resultado da partida e quem vai se classificar para as oitavas de final da Liga dos Campeões.

O que eu e você vimos lá em Paris foi o início de um processo que já deveria ter começado há muito, mas muito tempo.

O esporte começou a vencer o racismo ali, no gramado do Parque dos Príncipes com a atitude dos jogadores de PSG e Istanbul. Não é apenas a revolta contra uma ofensa de mais um idiota que acha que pode diminuir outra pessoa por conta da cor da pele. É o asco e a ojeriza contra um dos maiores cânceres da humanidade: o racismo.

Você já viu este colunista falar mais de uma vez que o esporte é o reflexo cuspido e escarrado da nossa sociedade. E você também já viu o enorme exército de passadores de pano tentarem justificar atos como o visto na capital francesa como “coisas do futebol” e “atitudes tomadas no calor da partida”. Afinal, “o povo ainda quer ver a bola rolando” e “não se deve misturar política com esporte”. São pessoas que adoram dizer que não são racistas, mas que adoram utilizar conjunções adversativas após a primeira frase.

Nota: conjunções adversativas aquelas que indicam oposição e contraste dentro de uma mesma oração. Mas, porém, contudo, todavia, entretanto...

Bom, nesse ponto, vale muito lembrar a frase icônica de Jon Snow no seriado Game of Thrones: “Meu pai sempre dizia que tudo o que vem antes do 'mas' não vale nada”.

Sempre há um “mas”, um “veja bem”, um “porém”, sempre há algo que diminua a dor de quem sofre o racismo.

E me admira muito ver as pessoas que estavam vendo o jogo no Facebook oficial da UEFA Champions League pedindo que a partida fosse reiniciada e que o locutor Jorge Iggor e o comentarista Mauro Beting “parassem com a lacração” e se concentrassem na partida. Ou que transmitissem outro jogo da competição.

Os jogadores de Paris-Saint Germain e do Istanbul Basaksehir deram o recado mais óbvio e claro dos últimos tempos. Nenhuma forma de racismo deve ser relativizada ou tolerada. Todas as formas de racismo devem ser combatidas.

É impossível não se lembrar de todo o trabalho feito por pessoas como Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, no combate ao racismo dentro do esporte e, consequentemente, dentro da nossa sociedade. Imaginem a esperança que brotou nos olhos dele e de todas as outras pessoas que lutam todos os dias contra todos os tipos de racismo e que ouvem a todo momento piadinhas, passadas de pano e até xingamentos. E como ele mesmo disse em entrevista concedida ao Jornal O Globo, a atitude dos jogadores de PSG e Istanbul é “o marco que a gente tanto queria no futebol”.

Não sabemos se atitudes como essas vão se repetir. Mas já temos um baita de um precedente.

O nosso grande Nelson Mandela já havia mencionado o poder do esporte no seu discruso histórico no Prêmio Laureus de 2000: “O esporte tem o poder de transformar o mundo. Tem o poder de inspirar. Tem o poder de unir as pessoas de um modo que poucas coisas podem fazer. Fala com a juventude em uma língua que eles conseguem entender. Esportes podem criar esperança onde antes só havia desespero. É mais poderoso que governos no que diz respeito a quebrar barreiras raciais. Ri na cara de todo o tipo de discriminação”.

O esporte tem o poder de transformar o mundo. Que os acontecimentos desse histórico dia 8 de dezembro de 2020 nos inspirem daqui pra frente. Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista antes de qualquer coisa. No futebol e na vida.

Edição: Mariana Pitasse