Paraná

Coluna

Crônica: e o nosso legado será a ciência

Imagem de perfil do Colunistaesd
A semente crioula, a variedade de cultivos, enfim, questões fundamentais para o futuro - Pedro Carrano
Ficamos mastigando o sentido da pequena parcela de terra, trabalhada com dignidade

Fotografar é vermo-nos a nós próprios à escala da história”, Barthes, citado no romance Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires.

Na passagem para 2021, reservamos um final de semana pra um rápido descanso, na chácara dos avós de minha filha, Clara. A propriedade fica em Mandirituba, região metropolitana de Curitiba, um lugar conhecido como região de faxinalenses e pequenos produtores.

Esse breve momento, no meio de um período turbulento, sem trégua e nem descanso, sempre me remete à preocupação sobre como as crianças vão perceber o que está ocorrendo no Brasil e no mundo, e logo penso sobre qual memória estamos ajudando os jovens a construir. Vivemos um período extremamente difícil, a crise acentuada do atual modelo de produção e concentração de renda, crise potencializada por um governo que não oferece qualquer sentido de futuro que não seja a morte.

Nesses três dias, nós tentamos nos desligar um pouco da vida digital, que marcou o nosso 2020, sobretudo o de minha filha, com aulas online e o tempo inteiro dentro de casa, sem nenhum contato com o grupo de amigas, a não ser nos jogos virtuais.

Em nenhum momento, porém, estivemos desligados da “experiência com coisas reais”, para recordar o saudoso Belchior: optamos pelo lúdico, pela criação, pela arte, o que esteve ligado à experimentação com as coisas. Fizemos caminhadas na estrada de terra todos os dias criando jogos no caminho, identificando plantas e os animais silvestres da região. Lembrando os versos do poeta espanhol Machado, tão citado e tão correto, que nos recorda sempre que o caminho se faz ao caminhar.

Pelas manhãs, tivemos o contato com a pequena horta ao lado da casa. A propriedade dos avós de minha filha passou por uma reconversão recente. Eles mudaram da vida de “chacreiros” de fim de semana para a produção no modelo agroecológico, com certificação, associada a outros produtores locais, o que marcou nossas conversas. A semente crioula, a variedade de cultivos, enfim, questões fundamentais para o futuro. Em um futuro que, esperamos, os produtores associados, os trabalhadores e trabalhadoras, estejam finalmente no poder e na organização de suas próprias vidas.

Em meio à diversidade, boa qualidade de vida no presente, e apontamentos de uma produção associada e viável, também ali estava o exemplo de um modelo necessário no campo, em franca oposição a um agronegócio e monocultivo voltado para exportação, carregada de morte, expansão sobre os territórios, e agrotóxicos.

Excluímos da virada de ano a ideia de um “refúgio”, ou a famosa ideia de fuga, afinal a política está presente em todas as relações do cotidiano. Resolvemos, ao contrário, abraçar a vida, em sua intensidade, perspectivas e combate. Ficamos mastigando o sentido da pequena parcela de terra, trabalhada com dignidade e acesso a mercado, com condições. O potencial de uma reforma agrária represada neste país.

Com as mãos na terra, com os olhos nas características da natureza local, com a curiosidade jovem da arte, ficamos na prática nos contrapondo a um governo de extrema-direita que tem enterrado a vida ao enterrar o conhecimento científico. Que rouba o lúdico da infância a milhares de crianças que ingressam na miséria.

Nesses dias fizemos ciência. E sonhamos com a ciência do povo. Nas mãos do povo.

Edição: Lucas Botelho