Ceará

Coluna

A epidemia do feminicídio

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Cariocas se solidarizam com mulheres argentinas no combate à violência contra a mulher
Cariocas se solidarizam com mulheres argentinas no combate à violência contra a mulher - Divulgação
O feminicídio tem se acentuado nesse período da pandemia.

Uma “epidemia social e histórica” que se abate em todo o território nacional e que tem no estado do Ceará um de deus principais centros de irradiação, não tem sido enfrentada com rigor pelas instituições do Estado ao longo do tempo. Apenas quando ganham alguma repercussão na mídia, os casos de feminicídio acabam ocupando algum lugar de destaque no debate público, como as mortes de seis mulheres em plena noite de Natal de 2020, provocadas por seus respectivos maridos, namorados ou ex-parceiros.

Esses assassinatos silenciosos, que ocorrem quase sempre no espaço doméstico, representam uma das faces mais cruéis do patriarcado, definido pela pensadora e militante feminista, Heleieth Saffioti, enquanto “regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens” e que “não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo”.

No dicionário Aurélio, feminicídio é definido como: “Assassinato proposital de mulheres somente por serem mulheres. [Por Extensão] Crime de ódio contra indivíduos do sexo feminino, definido também por agressões verbais, físicas e psicológicas”. Considerado pelo Código Penal Brasileiro como crime hediondo desde 2015, de acordo com a lei 13.104/2015, o feminicídio tem se acentuado nesse período da pandemia. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de 1,9%, se comparado com o ano de 2019, chegando a 648 casos apenas no primeiro semestre de 2020.

No Ceará, mesmo antes da pandemia, o índice de feminicídio foi o único que teve aumento em 2019, dentre as categorias criminais analisadas pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado. Segundo o Observatório de Segurança do Ceará, aqui, 34 mulheres foram mortas devido a seu gênero em 2019, número 13% maior em relação ao ano anterior. Em números absolutos, a partir de dados de 2018, o Ceará ocupa a 11º colocação no ranking nacional, porém, proporcionalmente, estamos em 2º lugar, como demonstra o gráfico do Atlas da Violência 2020.


Em números absolutos, a partir de dados de 2018, o Ceará ocupa a 11º colocação no ranking nacional, porém, proporcionalmente, estamos em 2º lugar. / Fonte: Atlas da Violência 2020

Outro elemento que merece ser destacado é o aumento da proporção do registro do crime de feminicídio em relação ao quadro geral de homicídios de mulheres no país entre 2017 e 2019. Enquanto o segundo apresenta uma tendência de queda, o primeiro evolui. Há um importante debate acerca desses dados. Existe uma elevação do número de casos de feminicídio ou apenas um aumento na tipificação desse tipo de crime? Ainda não existe uma resposta consensual sobre essas perguntas, mas é evidente a precariedade com que o poder público recebe e encaminha as denúncias e mesmo as frágeis garantias de segurança para as vítimas, interferindo diretamente na subnotificação de casos de violência contra a mulher.

Para se ter uma ideia, só existem no Ceará dez Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), nas cidades de Fortaleza, Pacatuba, Caucaia, Maracanaú, Crato, Iguatu, Juazeiro do Norte, Icó, Sobral e Quixadá. Apenas em 2018 foi inaugurada a Casa da Mulher Brasileira no estado, em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos, localizada na capital e que acolhe mulheres em situação de violência. Os demais municípios cearenses não contam com equipamentos semelhantes e estão longe de oferecerem as condições protetivas mínimas às vítimas, o que corrobora com os desfechos trágicos dessas dezenas de mortes anunciadas. Destaca-se ainda que, dentre as mais de duas mil   vítimas de feminicídio no estado, entre 2007 e 2017, de cada dez mulheres mortas seis eram negras, segundo o Atlas da Violência de 2019.

Infelizmente, essa epidemia do feminicídio está longe de ser eliminada e o avanço de forças reacionárias e obscurantistas no Brasil, a exemplo da própria ministra Damares, corrobora com ações e narrativas que naturalizam agressões e assassinatos de mulheres. Porém, se os ventos do norte não movem moinhos, como disse o poeta, o exemplo das mobilizações e conquistas das mulheres argentinas devem trazer novos ares de esperança às lutas dos movimentos feministas no país e em todo o continente sul americano, construindo as possibilidades para que os corpos e destinos das mulheres deixem de serem tutelados e determinados pelo machismo estrutural e pela violência patriarcal.

Edição: Francisco Barbosa