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Ford "pegou o beco"

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Ford já havia suspendido operações no país durante a pandemia - Sergio Figueiredo/Divulgação
Ao todo, cerca de 20 mil empregos diretos serão afetados.

Para os menos familiarizados com o cearês, “pegar o beco” significa sair de um lugar de forma um tanto abrupta, pouco gentil. E foi justamente dessa forma que a Ford anunciou o fechamento de três unidades da empresa nesses dias, após mais de um século de atuação no Brasil.

A fábrica de São Bernardo do Campo, a maior do grupo, já tinha encerrado suas atividades em 2019. Nesse mês, a empresa confirmou a interrupção imediata das atividades em Camaçari (BA), onde produz os modelos Ka e EcoSport e o fechamento, ao longo de 2021, das unidades de Taubaté (SP), que produz motores e a de Horizonte, no Ceará, que fabrica o utilitário Troller. Ao todo, cerca de 20 mil empregos diretos serão afetados, fora o impacto sobre toda a força de trabalho vinculada a cadeia de médias e pequenas empresas que gira em torno da produção dos automóveis.

Os discursos que prevalecem na análise desse processo, seja do ponto de vista da empresa, do governo federal ou da grande mídia, são bastante superficiais e não apontam para os elementos que são fundamentais para refletirmos sobre esse fato, que está longe de ser um caso isolado. A Ford justifica sua decisão afirmando que, na verdade, está realizando uma reestruturação em suas estratégias comerciais para a América do Sul, acelerada pelos impactos da pandemia. Bolsonaro, Guedes e cia, vociferam que a empresa estava chantageando o governo para conseguir mais subsídios, que foram negados, além da sua perda de competitividade, sobretudo, devido a atuação das montadoras chinesas. Já os grandes conglomerados da impressa e seus porta-vozes, vide rede Globo, alardeiam que deve haver um maior esforço para se reduzir o tão falado “Custo Brasil”, em outras palavras, aprofundar as reformas neoliberais e a desregulamentação completa das leis trabalhistas.

Assim, essas falácias acabam encobrindo as questões centrais que devem ser tratadas. Primeiro, já faz tempo que a participação da indústria na composição geral do Produto Interno Bruto (PIB) no país diminui a cada ano, uma das maiores quedas do mundo.


O governo cearense, para se ter uma ideia, concede cerca de R$ 1,7 bilhão em incentivos fiscais para grandes empresas anualmente. / Imagem: Fonte: IBGE

Há um limite estrutural no modelo de desenvolvimento adotado nas últimas décadas pelo Estado brasileiro. Mesmo nos governos Lula e Dilma, onde houve um ensaio de incentivo à industrial nacional e ao fortalecimento do mercado interno, a exemplo das políticas de conteúdo local e valorização do salário mínimo, tais medidas foram insuficientes para estancar o violento processo de desindustrialização e reprimarização da economia do país.  

Segundo, as políticas de incentivo fiscal no Brasil, e no Ceará, continuam a todo vapor. O governo cearense, para se ter uma ideia, concede cerca de R$ 1,7 bilhão em incentivos fiscais para grandes empresas anualmente (setores da siderurgia, agronegócio, calçadista, hotelaria, dentro outros), quase sempre sem nenhuma contrapartida por parte dos beneficiários. Enquanto isso, pequenas e médias empresas ficam à míngua, sobretudo, neste período de pandemia.

Terceiro, essa balela repetida vinte quatro horas por dia pelos Williams Bonners e Mirians Leitões nos telejornais, de que o Brasil não é competitivo no cenário internacional devido aos excessos de regulação nas relações de trabalho, a falta de autonomia do Banco Central, os pesados gastos do Estado com o funcionalismo público, a morosidade do Governo Federal na implementação de uma radical política de privatização das empresas estatais, etc., são remédios que só agravariam, ainda mais, nossas doenças, quase terminais, de estagnação e dependência econômica.

Ou seja, esse recente anúncio da Ford é apenas a ponta do iceberg de um problema mais complexo, relacionado ao projeto de desenvolvimento que deve ser assumido (ou abandonado) pelo Estado. Temos no Brasil um legado importante, inspirado, em particular, pelas formulações de Celso Furtado, que serve como referência para a elaboração de um modelo de desenvolvimento antineoliberal que aponte para além dos interesses e lucros de grandes empresas, nacionais e multinacionais, e que tenha como pedra angular de sua edificação, a qualidade de vida da população e a superação de nossas mazelas sociais.

Não basta o governador Camilo Santana, por mais bem intencionado que esteja, sair a procura de uma nova empresa para assumir as atividades da futura fábrica abandonada em Horizonte, como foi anunciado. Dando continuidade à atual política de desenvolvimento e incentivos fiscais, a qualquer momento, podemos levar outras rasteiras, sem arrodeios. E não adiantará ficar esculhambando ou   botando boneco, pois para o grande capital, o povo que se lasque.

Edição: Monyse Ravena