Paraná

Coluna

Da fragmentação dos anos 90 ao enxugamento do ramo automotivo. Pra onde vamos?

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Desde 2020, setores como o ramo de fertilizantes lutaram contra o desmonte promovido pelo governo Bolsonaro
Desde 2020, setores como o ramo de fertilizantes lutaram contra o desmonte promovido pelo governo Bolsonaro - Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba
A preocupação deste debate é sobre as três décadas de queda na participação da indústria no PIB

Nesta semana, a Ford anunciou o encerramento da produção de veículos no Brasil, com o fechamento em três plantas de produção: em Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE). A Mercedes-Benz também fechou, em dezembro de 2020, planta em Iracemápolis, em São Paulo. O assunto da produção de conteúdo nacional é mais uma questão dolorosa e sufocante no governo de Bolsonaro e Guedes.

Diante desse cenário, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), a mídia empresarial e analistas econômicos não fizeram análises convincentes sobre saída da montadora transnacional do país. A Anfavea não “comentou o tema”, limitando-se a falar sobre o famigerado “Custo Brasil” e em seu site não consta qualquer análise aprofundada sobre o assunto.

Já o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) reagiu apelando ao senso comum, aparente, individualista e desqualificado, o que lhe é próprio, afirmando que os subsídios exigidos pelas montadoras do ramo, “com dinheiro do contribuinte” tornaria impossível qualquer ação por parte do governo –, desconsiderando o papel que as cadeias produtivas possuem na geração de empregos de mais qualidade.

No fundo, a preocupação deste debate é sobre as três décadas em que a participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB) vem caindo. Passamos de 27,3% em 1988 na relação PIB/indústria para o patamar atual em torno de 11%. Os discursos de Bolsonaro e Guedes contêm uma aceitação passiva de uma realidade na qual, cada vez mais, o país se converte em mero importador de bens e tecnologia.

Não mencionam, analistas e governo, que a chamada “guerra fiscal” nos anos 1990 foi a busca por regiões com maiores isenções fiscais, mas sobretudo pelo menor preço de força de trabalho, menor tradição sindical e organizativa, algo determinante para a descentralização do ramo metalúrgico no Brasil da região do ABC, em São Paulo, rumo a outros estados. O discurso de “custo Brasil” não se justifica diante de todos os sacrifícios e adaptações que os trabalhadores brasileiros pagaram desde os anos 90.

Hoje, vemos que a instalação sem compromisso com os direitos trabalhistas, com as regiões de instalação, com a integração nacional, e com o nível de sinergia e cadeias produtivas, é próprio do capitalismo financeirizado e mundializado, que pode transferir ou desmontar facilmente uma planta produtiva.

Nos países dependentes, a perspectiva era expansionista no mercado automotivo no começo do século 21, o que agora se reverte com a crise econômica na América Latina aliada à crise sanitária. Desde o início dos anos 2000 os mercados emergentes ampliavam o consumo de veículos automotivos, caso do Brasil, México e Argentina, onde a relação entre número de habitantes e veículos cada vez diminuía mais.

Diante desse quadro, o governo Bolsonaro aprofunda o seu método habitual do “E daí?”.

Descentralização do ramo metalúrgico para outros estados

No final da década de 1990, o país assistiu a uma acirrada disputa entre os governos estaduais, apelidada de guerra fiscal, que resultou na instalação de plantas automotivas nos estados de Goiás, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia – principalmente no ramo de automóveis leves.

À época, o país recebeu mais de vinte montadoras de veículos leves (automóveis e pequenos utilitários) e pesados (ônibus e caminhões). Foram investidos perto de U$ 20 bilhões entre 1994 e 2003.

O desenvolvimento econômico, desencadeado desde os anos 1950, apoiado na instalação das transnacionais de automóveis na região de São Paulo, passava então por uma descentralização e mudança geográfica. Embora a infraestrutura para isso e a logística continuaria tendo a maior capital do país como o seu centro e referência.

Com isso, a guerra fiscal entre os estados criou novos polos de instalação das montadoras, que buscavam regiões com menor organização dos trabalhadores. Criam-se então as chamadas greenfields regions, o que significa uma região sem grande tradição industrial que passa a receber importantes investimentos no setor automobilístico (FIRKOWSKI, 2007).

A reestruturação produtiva aplicada a partir da década de 90 nas unidades industriais, de maneira geral, fornecia a base para a flexibilização de direitos e maior intensificação do ritmo de trabalho. Em estudo voltado para a relação entre demissões no mesmo período de instalação de montadoras no Paraná, MOTIM (2007) resume essa característica:

“A intensificação do ritmo de trabalho, associada à remuneração por produção com metas predeterminadas, contribui para a piora das condições de trabalho e traz como consequências, doenças profissionais e acidentes de trabalho. A sobrecarga de trabalho torna-se mais pesada, devido à responsabilização do trabalhador pela melhoria da qualidade, obtenção de metas, manutenção e limpeza do maquinário e a busca constante de formação e qualificação profissional”, página 247.

Desde aquele momento, mesmo com a diversidade de regiões de instalação das montadoras, verifica-se a tendência de queda ou decréscimo de absorção de mão de obra conforme períodos da produção, diretamente ligados ao uso de ferramentas de exploração da força de trabalho, de aumento ou intensificação da jornada de trabalho. Na voz de MOTIM (2007):

“A adoção de sistemas flexíveis de produção, que permitem aumentar e diminuir o número de trabalhadores em atividade, conforme as necessidades das empresas, usando estratégias, como: a terceirização ou subcontratação, criação de novos turnos de trabalho, contrato por tempo determinado, recurso às horas extras e banco de horas, férias coletivas ou mesmo a demissão”.

Componentes nacionais

O governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960) inaugurou um momento definidor na política industrial e, particularmente, automotiva. A partir dos anos 1950, a inserção do automóvel no Brasil acontece no contexto de um modelo dependente, que privilegia a produção de bens de luxo e despreza as necessidades completas da massa de trabalhadores.

Assim mesmo, um diferencial importante entre a política do ramo automotivo na década da sua instalação, comparada aos anos 1990, reside no fato de que aquele momento foi marcado pela nacionalização da produção de autopeças (OLIVEIRA, 1997).

O governo brasileiro, ao determinar índices de nacionalização de produção de veículos, conceder benefícios fiscais e estímulos cambiais na importação de máquinas pelas indústrias estrangeiras, nacionais e mistas, propiciou grandes investimentos no setor de autopeças. A década de 1960 foi de consolidação da indústria automotiva no país, quando foram produzidos 140 mil veículos e se iniciou a exportação de ônibus e caminhões (1965), além de carros (1969)..

A nacionalização da composição de autopeças era uma característica do período de instalação da indústria automotiva. Hoje temos a situação oposta em comparação com a instalação da indústria automotiva no país.

Florestan Fernandes e um projeto de país

Os problemas levantados acima não podem ser resolvidos sem uma mudança na condição dependente brasileira. Florestan Fernandes, entre os anos de 1968 e 1975, nas obras Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Capitalismo Dependente e classes sociais na América Latina e A revolução burguesa no Brasil sistematizou os desafios das economias dependentes, no Brasil e na América Latina.

O processo de fim da colônia e o início da transição para uma sociedade de mercado, chamada pelo autor de “ordem social competitiva” foi um processo imposto de fora, sob o ritmo de fora, e no caso brasileiro sem uma burguesia que, enquanto classe social, estivesse disposta a alargar seus horizontes democráticos.

Mesmo com à adesão à sociedade de mercado e com o desvínculo da metrópole, o controle do ritmo de nosso desenvolvimento é marcado pelo capitalismo dependente. “O núcleo de real vitalidade econômica produzia para exportação, não para o consumo interno”, escreveu Florestan Fernandes.

Voltando ao caso Ford, ao longo da semana analistas como Luis Nassif, Paulo Kliass, Antônio Corrêa de Lacerda, entre outros colocaram o problema de medidas para o ramo, que necessita da imposição de percentuais de conteúdo nacional. Pautaram também o necessário debate acerca dos rumos do desenvolvimento brasileiro e da recuperação do planejamento como instrumento público para a construção de um projeto estratégico de futuro, como se referiu Kliass.

Porém, é preciso complementar também: Nada disso deve se concretizar no país de Bolsonaro e Guedes, onde futuro é o que mais anda faltando. A ruptura e a necessidade de um novo governo, a partir de um programa popular, nacional, de geração de renda e fomento à indústria continua na ordem do dia.

Referências bibliográficas e indicações de leituras:

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FIRKOWSKI, Olga. A dimensão espacial da implantação da indústria automobilística no aglomerado metropolitano de Curitiba. In: Idem anterior.

___________, ARAÚJO e MOTIM, Indústria automobilística no Paraná: implicações sobre o emprego e as relações de trabalho, in “Indústria automotiva, a nova geografia do setor produtivo”.

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Edição: Lucas Botelho