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Coluna

A espetacularização da vacinação

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Chegaram no Ceará 218 mil doses, ou seja, quantidade para imunizarmos, nesse primeiro momento, somente 109 mil pessoas. - Foto: Governo do Estado do Ceará
O mais dramático de tudo isso é que não se sabe quando teremos novas doses de vacinas.

É óbvio que o início da imunização contra a covid-19 em todo o mundo é uma grande notícia. Uma vitória da ciência, que em tempo recorde conseguiu produzir uma vacina tão importante para a humanidade. Ver a enfermeira Mônica Calazans receber a primeira dose, gera certo alívio e, confesso, que até uma comoção. Ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar o lamentável (e desnecessário) populismo que estamos presenciando no Brasil com a espetacularização de uma campanha de vacinação, que mais deveria nos envergonhar.

A atuação criminosa do governo federal, que mais atrapalha do que contribui no combate à pandemia, seja por omissão, boicote às ações dos estados, ou mesmo pela propagação de mentiras, como o uso preventivo da cloroquina, não autoriza governadores e prefeitos, mesmo que opositores à Bolsonaro, a montarem palanques em cima de milhares de cadáveres e do sofrimento de familiares das vítimas da covid, alimentando falsas ilusões, sob o pretexto de injetarem esperança à população.

Lamentavelmente, foram distribuídas até hoje apenas seis milhões de doses da vacina CoronaVac (Butantan/Sinovac Biotech) para todo o território nacional. A região Norte recebeu 708 mil doses, o Nordeste, cerca de 1,5 milhão, o Sudeste, pouco mais de 2,5 milhões, o Sul, 750 mil e o Centro-Oeste, 574 mil doses.  Segundo a Rede de Pesquisa Solidária, existem no Brasil aproximadamente cinco milhões de trabalhadores da saúde. Ou seja, só para vacinar esses profissionais seriam necessárias 10 milhões de doses. 

Chegaram no Ceará 218 mil doses, ou seja, quantidade para imunizarmos, nesse primeiro momento, somente 109 mil pessoas. A partir de uma distribuição inicial para os municípios de Maracanaú, Caucaia, Baturité, Itapipoca, Sobral, Tianguá, Camocim, Acaraú, Crateús, Juazeiro do Norte, Crato, Iguatu, Brejo Santo, Icó, Tauá, Quixadá, Canindé, Aracati, Russas e Limoeiro do Norte, as vacinas foram encaminhadas para as 184 cidades cearenses, ficando sob responsabilidade das prefeituras a imunização. Para se ter uma ideia, em Iguatu, município localizado na região Centro Sul do estado, há uma demanda de 1920 doses para os profissionais de saúde e de 4107 para idosos acima de 75 anos, mas apenas 689 foram disponibilizadas, sem nenhum prazo ou expectativa para outra remessa.

A qualquer momento, se espera a chegada de dois milhões de doses vindas da Índia (Oxford/AstraZeneca), após diversos atrasos e informações atravessadas, e a liberação da Anvisa para o uso de mais 4,8 milhões de vacinas envasadas pelo Instituto Butantan. Ou seja, quase sete milhões de novas doses que não devem retirar do Brasil a lastimável primeira colocação entre os países que menos aplicaram vacina de forma proporcional à população, hoje em 0,05%. No Chile, por exemplo, a previsão é de que até junho 15 milhões de cidadãos (numa população de 19 milhões) já estejam imunizados.

A Fiocruz e o Butantan, seriam capazes de produzirem milhões de vacinas em um tempo relativamente curto. Porém, faltam insumos (quase todos vindos do exterior), emperrados, em especial, devido aos imbróglios diplomáticos entre o Itamarati e a China, além da falta de pessoal suficiente, devido ao desmonte e a precarização do trabalho nesses institutos, promovidos pelos sucessivos cortes de verbas dos governos de São Paulo e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Tentando correr contra o tempo perdido, só agora a Associação de Governadores do Nordeste negociam de forma mais pragmática uma parceria com o governo Russo para serem produzidas cerca de 50 milhões de doses da Sputnik V no Brasil, já utilizada em vários países, inclusive na nossa vizinha Argentina. 

O mais dramático de tudo isso é que não se sabe quando teremos novas doses de vacinas quando esses primeiros lotes acabarem. Ou seja, essa tal campanha, inevitavelmente, será paralisada. Diante dessa situação caótica, cogita-se até o uso de todas as doses de uma só vez, ou seja, de não serem estocadas as doses para a segunda aplicação. 

Infelizmente, a vacinação no país, a despeito do “pão e circo” promovido pelas autoridades federais, estaduais e municipais em torno do tão esperado início da vacinação, seguirá em doses homeopáticas. Enquanto isso, o fim do auxílio emergencial, as mais de mil mortes diárias pelo vírus, a falta de oxigênio, a superlotação nos leitos de UTIs, os transportes coletivos lotados e o desrespeito às regras mínimas de prevenção por parte considerável da população, alimentado por negaciosismos e fake news, parecem pintar o cenário brasileiro para os próximos meses.

Mesmo com a letargia das autoridades brasileiras, sobretudo, do poder executivo federal, nas negociações e compras das vacinas e seus insumos, controladas por grandes corporações farmacêuticas, é necessário um profundo debate sobre essa concentração global na produção e distribuição das vacinas, tema que aprofundaremos noutro momento.

Há dificuldades, das mais variadas ordens, em todos os países nesse processo de corrida pela vacinação, mas no Brasil esse entrevero é acompanhado de incertezas e incompetências que tornam nossa situação uma das mais graves do mundo. Aos demagogos de plantão, é bom lembrarmos, que se as 400 milhões de vacinas que precisamos no Brasil caírem do céu hoje, faltarão seringas e agulhas para imunizarmos a população.

Edição: Monyse Ravena