Rio Grande do Sul

Coluna

Agora, peguei nojo

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O debate "Negacionismo, suas Implicações  e formas de enfrentamento", evidenciou que distrações e expectativas enganosas, desejos e medos, enuviam a consciência coletiva, e induzem a comportamentos que nos impedem de alcançar objetivos comuns - Divulgação
Precisamos fortalecer, estimular processos de comunicação social, mídias independentes

Nesta semana, não tenho vontade de pensar no presidente da República, em seus milhões de reais gastos em alimentos que envolvem uma montanha de chantily, uma muralha de chiclete e aqueles gritos de VPQP seguidos das ameaças de entubar latas de leite condensado em profissionais da imprensa, sob aplausos do representante maior da diplomacia nacional, que ria e batia com o garfo na mesa e gritando mi-to, mi-to, mi-to, enquanto pessoas infectadas pela covid eram deslocadas desde Manaus, para talvez morrer em hospitais de Porto Alegre.

Peguei nojo, e isso me trouxe um ditado do Alegrete: “não me faz te pegar nojo”, dizia minha vó, indicando um limite que, se ultrapassado, não teria volta.

Felizmente, carregado pela mesma lembrança de infância, revivi outro sentimento que deve ser comum a muitos gaúchos. Quando criança, aprendi a andar a cavalo. “De em pelo”, só com o Xergão, ou mesmo com o animal encilhado a rigor, descobri, muito cedo, que o segredo era um só, e quem viveu, sabe: Não importa a força, a idade, a energia do animal domado. Se tu firmar os joelhos, segurar os calcanhares contra o cavalo, mantendo as rédeas firmes, ele se comporta de acordo. Se tu confiar no teu papel, e fizer a tua parte, o cavalo mantém a liturgia da função. 

Se tu não fizer isso, se tu abrir mão da tua responsabilidade de condutor, se tu amarelar, te acovardar, não importa o cavalo, pode ser um pangaré, um puxador de pipa d'água da cacimba, que ele tomará conta das rédeas, se sentirá sem dono e irá para onde quiser, inclusive para lugar algum.

Pois ontem percebi, em atividade da Rede Soberania/BdF/RS e Coletivo a Cidade Que Queremos-CCQQ/Porto Alegre, em parceria com entidades de ação local, regional, nacional e setorial, de várias regiões da América Latina, que os aprendizados da infância são para toda a vida. Se permitirmos, os animais nos controlam.

A atividade do FSM 2021 a que me refiro, "Negacionismo, suas Implicações e alternativas para seu enfrentamento", evidenciou que distrações e expectativas enganosas, desejos e medos, enuviam a consciência coletiva, e induzem a comportamentos que nos impedem de alcançar objetivos comuns, de proteger direitos, de construir alianças, de controlar os gafanhotos e outros animais.

O negacionismo, segundo todos os palestrantes, se apoiaria em alienação facilitadora do controle, por terceiros, de nossos corações e mentes. A alienação seria construída para ocultar os dramas reais e o fato de que suas raízes comuns afetam a todos. A luta de Viamão contra a máfia do lixão, a produção de textos pseudo-científicos em defesa de interesses de transnacionais, a ocultação de problemas decorrentes de biotecnologias testadas em tempo real, usando nossos territórios e povos como cobaias, as alterações nas normas legais, o descumprimento de acordos internacionais, a sobrevalorização de direitos comerciais em detrimento dos direitos humanos, o neocolonialismo, o aquecimento global e todas as formas de racismo, genocídio e ecocídio responderiam a interesses do sistema capitalista global, e se agravariam em função de ações da grande mídia corporativa, seus formadores de opinião e governos títeres, mantidos pela alienação, apatia e ignorância dos povos. Em todos os casos, o cavalo é um só, que tomou o freio nos dentes, e corre para o precipício.

A solução? Não há caminho, mas há que caminhar. Os enfrentamentos sugeridos pelos expositores se assemelham aos conselhos de minha avó. “Te assume, guri, vai e faz a tua parte”. “Não te mixa, que esse jogo não é 'às brinca'”, dizia ela, e acho que só hoje, após escutar as falas do encontro de ontem, sou capaz de entender o valor e a abrangência daqueles ensinamentos.

Os participantes do evento, que recomendo a todos que tiverem curiosidade em relação ao tema, anunciaram que a ação e a comunicação ampliam a consciência, que por sua vez alimenta a coragem, que reforça as ações. “Até a água, se ficar parada, apodrece”, diria minha avó.

Precisamos agir para construir laços de aproximação entre ativismos que são siameses, ainda que pareçam tão distantes como o lixão de Viamão e a mineração nas montanhas do Equador. Precisamos fortalecer, estimular processos de comunicação social, mídias independentes, comprometidas com elementos de ciência digna. Precisamos construir demandas comuns, em âmbito internacional, necessárias e amplas como a quebra de patentes de vacinas para a covid e a criminalização de genocidas e ecocidas, que desumanizam os povos, destroem elementos de cultura, bens comuns e todos os fundamentos das soberanias nacionais. Precisamos, também, entender que para além das disputas racionais, temos que alimentar aspectos psicossociais, que dão base à solidariedade, em oposição ao individualismo.

Isto exige entender que a racionalidade não consegue abarcar a totalidade das dimensões da vida. Que a realidade vai além do que podemos compreender. Que a cultura, a arte, a ética, a espiritualidade, a ecologia envolvem um metabolismo complexo onde operam elementos de amorosidade, e eventualmente de ódio, inerentes à luta da vida contra a morte, do humanismo contra o obscurantismo.

Ciente disso, somando os aprendizados do debate sobre Negacionismo, suas Implicações e alternativas para seu enfrentamento (recomendo, pela qualidade, investir tempo e assistir tudo), com aquelas lembranças do passado, percebi que não é ruim, “pegar nojo” do que não presta e precisa ser modificado. E que é ótimo, e fortalecedor, perceber que somos muitos, em vários locais, com os mesmos desafios e objetivos, e que o FSM é apenas um dos canais de que dispomos, para viabilizar a comunicação e o concerto de ações comuns.

Sem dúvida, como canta o Grupo UNAMÉRICA, o povo unido, jamais será vencido.

O povo, iludido, não é povo, é boiada a caminho do abate.

A música de hoje, tema de abertura e do fechamento do encontro "Negacionismo, suas Implicações e alternativas para seu enfrentamento", é a que segue. Que ela nos inspire!

 
O Povo Unido

Projeto Canções para Tempos de Cólera Música: O Povo Unido Jamais Será Vencido Versão em português: Dão Real Música original: El Pueblo Unido Jamás Será Vencido, de Sérgio Ortega/Quilapayun Grupo Unamérica Dão Real – voz, violões e baixo Zé Martins – charango, zampona, percussão e vocais Participação especial: Katia Marko e Stela Pastore (coro) Técnico de som e mixagem: Vinicius Braun (StudioAlegre) Direção e produção do clipe: Katia Marko e Zé Martins Edição: Vinicius Braun (StudioAlegre) Porto Alegre, abril de 2020 https://www.vakinha.com.br/vaquinha/cancoes-para-tempos-de-colera

Posted by Grupo Unamérica on Friday, May 1, 2020

 

OBS: Amigues leitores. Os links são opções de acesso, para eventuais interessados nas fontes citadas. Recomendo, enfaticamente, tão somente que não deixem de escutar a música.

Edição: Katia Marko