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A morte de Morro García e o debate urgente sobre depressão e saúde mental no esporte

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O mundo do futebol foi tomado de surpresa neste sábado (6) com a notícia da morte do atacante uruguaio Morro García - Reprodução/Twitter/Godoy Cruz
Temas como saúde mental, depressão e ansiedade se transformaram em assuntos proibidos no futebol

O mundo do futebol foi tomado de surpresa neste sábado (6) com a notícia da morte do atacante uruguaio Santiago Damián García Correa, mais conhecido como Morro García. De acordo com o jornal “El Sol”, da cidade de Mendoza, na Argentina, a polícia encontrou o corpo do atacante do Godoy Cruz ao lado de uma arma e com um ferimento à bala na cabeça. A maior suspeita das autoridades locais é a de que o uruguaio tenha cometido suicídio. Ele tinha apenas 30 anos.

Maior artilheiro do “Expresso” no Campeonato Argentino com 50 gols em 118 partidas, Morro García estava afastado do time e passava por tratamento psiquiátrico. Além disso, tinha testado positivo para covid-19 em 22 de janeiro e, desde então, cumpria isolamento até de seus familiares. Seu último post nas redes sociais foi justamente em 21 de janeiro. Nela, afirmava estar tranquilo e que “podia olhar na cara de todos”. Além do Godoy Cruz, Morro García teve passagens pelo Nacional de Montevidéu, pelo Kasimpasa (da Turquia), pelo River Plate (do Uruguai) e pelo Athletico Paranaense no ano de 2011. 

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Saúde mental dos atletas

O choque com a notícia da morte de Morro García gerou inúmeras homenagens e publicações de várias personalidades do futebol argentino. A mensagem principal era a necessidade cada vez maior de se cuidar da saúde mental dos atletas. Sebá Domínguez, ex-zagueiro do Corinthians, do Estudiantes de La Plata e do Newell’s Old Boys, utilizou a sua conta no Twitter para chamar atenção para aquele que ainda é um dos maiores tabus do futebol.

“O jogador de futebol profissional geralmente é admirado. Muito dinheiro em pouco tempo. Muito reconhecimento em pouco tempo. Muita potência em pouco tempo. Muito de tudo e, às vezes, tudo de nada. ‘El Morro’ não o encontrou de volta e, como para outros jovens, faltava algo para ser feliz. (…) A saúde mental NÃO faz distinção entre as posições no campo, nem é comprada com dinheiro, prestígio ou reconhecimento. Lamento muito sua partida, Morro. Sem te conhecer isso me machuca também. Espero que você esteja em paz. Muita força para sua família”, publicou Sebá.

Zagueiro do Talleres, Juan Komar também usou as redes sociais para pedir ajuda psicológica em todos os clubes e em todas as idades.

“Com o coração destroçado prefiro recordá-lo sempre com um sorriso como o emblema e ídolo que foi. E por outro lado, não podemos hoje, com a tragédia, dizer que faz falta acompanhamento para os jogadores e esquecer amanhã. Precisamos de profissionais de psicologia em todos os clubes e para todas as idades”, afirmou Komar.

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Assunto proibido no futebol

Você já viu este colunista afirmar em alto e bom som que o futebol é a maior invenção do mundo depois do sorvete de flocos e do pão de queijo. O grande problema é que o ambiente do velho e rude esporte bretão é muito mais hostil do que você pode imaginar. Há quem diga que jogadores de futebol não podem reclamar de pressão por bom desempenho e bons resultados já que recebem muito dinheiro para exercer a sua profissão. Essa afirmação (repetida várias e várias vezes) acabou se tornando uma espécie de regra: temas como saúde mental, depressão, ansiedade e afins se transformaram em assuntos proibidos no ambiente do futebol.

As falas de Sebá Domínguez e Juan Komar resumem bem o ponto desta humilde coluna. Vivemos num tempo extremamente complicado onde cobramos e somos cobrados 24 horas por dia por todos e por nós mesmos. Queremos ser os melhores, queremos ser perfeitos e nos livrarmos de qualquer vestígio de fraqueza e de dúvida. Toda essa pressão acaba com a saúde mental de qualquer pessoa. E como se isso não bastasse, ainda engrossamos o coro que trata esse problema como “frescura” e afirma que quem sofre pressão de verdade são os trabalhadores que acordam cedo, saem para trabalhar e voltam tarde da noite para suas casas. Aqueles que defendem essa ideia parecem ignorar o fato de que toda essa “glamourização” do sofrimento é uma das coisas que mais destroem a saúde mental das pessoas.

Se é assim conosco, imaginem só como fica a cabeça de quem pratica o esporte de alto rendimento. De quem disputa Copas do Mundo ou medalhas olímpicas. De quem treina todo dia e abre mão do convívio com familiares e amigos para ser o mais rápido, o mais forte e/ou o mais veloz. Lidar com as críticas que vêm da imprensa e dos torcedores, com a exposição, com todo o tipo de “facilidade” que esse mundo traz consigo, manter o foco e continuar sorrindo para as câmeras não é nada fácil.

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Histórico no futebol

Morro García se envolveu em confusões dentro e fora de campo, é verdade. Teve problemas para manter o peso, foi suspenso por conta de uma briga generalizada num clássico entre Nacional e Peñarol (no ano de 2014) e por uso de cocaína. Talvez tenha errado por irresponsabilidade ou inconsequência. Assim como eu e você erramos várias e várias vezes e em situações muito mais condenáveis. Afinal, “o tarado é toda pessoa normal pega em flagrante”, como bem dizia Nelson Rodrigues. Só que esse julgamento baseado na premissa de que “ele não podia ser infeliz já que ganhava tanto dinheiro” é nocivo num nível que nem dá pra explicar aqui. É o mesmo que resumir a felicidade de uma pessoa a um punhado de dólares, euros ou reais.

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A depressão

Infelizmente, não é só o mundo do futebol que pensa assim. Depressão e saúde mental ainda são assuntos que não recebem a devida atenção de boa parte da nossa sociedade. Talvez por ainda acharmos que isso é “frescura”. Afinal, homem que é homem sofre calado e aguenta as porradas que a vida dá sem reclamar, chorar ou buscar ajuda. Demostrar fraqueza ou sentimentos ainda é considerado o contrário de “virilidade” nesse mundo conturbado. Infelizmente.

A depressão não escolhe quem vai atacar. Não seleciona ninguém baseado na conta bancária, na religião (um abraço apertado na galera que acha que é “falta de Jesus na vida da pessoa”) ou no número de horas trabalhadas por dia. Pode ser eu, pode ser você, seu amigo, seu vizinho, qualquer pessoa.

Imagine chegar ao ponto em que você acha que morrer é a melhor opção. Imagine chegar ao extremo, que é acabar com a própria vida para fugir do sofrimento causado por essa doença.

É por isso que cuidar da saúde mental é tão importante.

Morro García, ídolo de uma torcida apaixonada por futebol, sucumbiu vítima de uma doença devastadora. Assim como o atacante uruguaio, vários outros atletas sofrem com a falta de cuidados com a saúde mental dentro dos nossos clubes. Não só os jogadores profissionais, mas as categorias de base e demais funcionários.

Se cuidem, pessoal. Cuidem dos seus. E se você se sente sozinho, triste e com vontade de “colocar um fim em tudo”, procure ajuda. A vida pode ser curta, e a situação pode não ser das melhores, mas ainda vale a pena viver.

Grande abraço. E façam terapia. Faz um bem danado.

 

*Luiz Ferreira é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista, grande amante de esportes e colunista do Brasil de Fato RJ.

Edição: Camila Maciel