Ceará

Coluna

As falácias da reforma administrativa

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"Nas administrações municipais, o contingente de servidores estatutários ficou relativamente estável em cerca de quatro milhões de pessoas. " - Sintrajufe/Divulgação
O grau de violência da proposta representa o maior atentado contra os servidores federais

Está em pauta no Congresso Nacional um projeto de reforma administrativa, enviado pelo governo  federal em forma de Proposta de Emenda Constitucional (PEC 32/2020), que não poderia ter outra natureza, senão o de um golpe de morte contra o serviço público. O grau de violência dessa proposta representa o maior atentado contra os servidores federais, estaduais e municipais da história brasileira, mas não só. É também um duro ataque à população mais pobre do país, que depende cotidianamente das políticas sociais de educação, saúde, assistência e outras.

Nesse artigo apresentarei alguns dos argumentos lançados pelos patrocinadores dessa reforma e que justificariam a sua aprovação e, posteriormente, os confrontarei com informações e dados que desautorizam Guedes e sua camarilha, que a partir de mentiras ou distorções da realidade tentam convencer a opinião pública de seus intentos, com o entusiasmo da grande mídia.

Essa reforma administrativa, baseia-se em alguns eixos centrais: na flexibilização da estabilidade do servidor público; na incorporação de mecanismos empresariais para avaliação, promoção e progressão do funcionalismo e no fim da exclusividade do concurso como meio de ingresso no serviço público, com a criação de novos vínculos empregatícios, em consonância com a reforma trabalhista aprovada em 2017.

Seus defensores afirmam que a máquina pública no Brasil é inchada e ineficiente, que o servidores possuem salários muito altos e que o funcionalismo público é beneficiado com inúmeras regalias. Junto a esta verborragia, divulgam uma série de números comparativos a outros países, que descontextualizados passam uma ideia equivocada, mas convincente ao conjunto da população.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI), ferrenha apoiadora da PEC 32/2020, publicou no final do ano passado uma nota técnica intitulada “O peso do funcionalismo público no Brasil em comparação com outros países”, a partir da compilação de dados levantados pelo Banco Mundial (BM) e apresentados no famigerado documento “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, que contêm, na visão dos arautos  do neoliberalismo, o receituário para o país superar sua crise. A CNI, em tom de denúncia, alardeada em toda a imprensa e repetida como mantra pelos porta-vozes do chamado mercado, diz que o Brasil é o sétimo país do mundo que mais gasta com o funcionalismo público, cerca de 13,4% do seu Produto Interno Bruto (PIB).

A cara de pau da entidade empresarial é tão grande que ela não expõe outros dados que são fundamentais para traçarmos um quadro completo do problema em discussão. Essa mesma pesquisa revela que, se levada em consideração a proporção dos servidores públicos com relação a população ocupada, o Brasil tem o índice de 12,1%, bem abaixo dos 18% de média das nações que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com relação a população geral, apenas 1,6% da população brasileira é composta por funcionários públicos, muito distante de países que inclusive são vistos como exemplos por liberais de diversas matizes, como por exemplo: Noruega (30 %), Dinamarca (29.1%), Suécia (28.6 %), Finlândia (24.9 %), França (21.4 %), Canadá (18.2 %) e Coréia do Sul (7.6%). 

Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) e a Pesquisa de Informações Básicas Estaduais (ESTADIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de servidores estatutários na administração estadual caiu de 2,441 milhões em 2018 para 2,247 em 2019. Nas administrações municipais, o contingente de servidores estatutários ficou relativamente estável em cerca de quatro milhões de pessoas. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstra que entre 2006 e 2017, por exemplo, os gastos com o funcionalismo público se mantiveram estáveis, 9,77% e 10,74%, respetivamente. Ou seja, esse descontrole total dos investimentos no serviço público, como é propagandeado, não é condizente com a realidade. Também aponta que em cada 10 servidores, apenas um é federal, e que nas últimas décadas a expansão do serviço público se concentrou na esfera municipal, que concentra 60% dos vínculos do setor público e ganham, em média, três vezes menos que os servidores federais.

Segundo a ESTADIC de 2017, no Ceará apenas 1,2% da população é composta por servidores públicos estaduais, o menor índice do país, junto com o Maranhão. No nosso estado temos apenas 89.130 servidores ativos, para darem conta de uma realidade marcada por graves desigualdades sociais e econômicas, como temos debatido nessa coluna nos últimos meses. Ponhamos nessa lista ainda, a quantidade de professores temporários ou subcontratados nas redes estadual e municipais de educação, a carência de profissionais na área da saúde, na capital e no interior, do posto aos hospitais de referência, da terceirização acelerada de funções importantes em diversos equipamentos do governo e das prefeituras. Enfim, além de ficção, a tese do inchaço da máquina pública é um crime hediondo contra a vida e os direitos básicos do povo.

Ainda no rol das mentiras divulgadas diuturnamente, estão as de que no Brasil se gasta exageradamente com o financiamento das políticas públicas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), dos 193 países que formam a entidade, 81 deles direcionam uma proporção maior de seus orçamentos para a saúde do que o Brasil. Segundo a Pesquisa “Education at a Glance 2019”, em todos os níveis o investimento por aluno no país são abaixo dos observados nos países da OCDE. Na educação infantil investimos anualmente US$ 3,8 mil por aluno, a média da OCDE é de US$ 8,6 mil. No ensino fundamental, US$ 3,7 mil por aluno brasileiro, contra US$ 10,2 mil e do ensino médio US$ 4,1 mil diante de US$ 10 mil. A média salarial dos docentes brasileiros é 13% inferior à média da América Latina. O professor de ensino médio no Brasil recebe por ano aproximadamente U$S 25.966, quase metade do que é pago nos 38 países ricos e integrantes da OCDE, que é de U$S 49.778.
Outra falácia que merece ser refutada é a de que os servidores públicos brasileiros, em geral, possuem salários muito discrepantes se comparados com os trabalhadores da inciativa privada. Ainda segundo o Atlas do Estado Brasileiro 2018, publicado pelo IPEA, o funcionalismo brasileiro ganha 8% mais do que trabalhadores em funções semelhantes no setor privado, abaixo da média das principais economias do mundo que é de 21%. E são justamente os servidores que possuem os vencimentos e benefícios mais elevados que não serão impactados pela reforma proposta, as denominadas carreiras de Estado, como as da justiça e as militares.

Enquanto as elites tratam os servidores como inimigos e o povo mais simples de forma descartável, o que temos no Brasil e consequentemente no Ceará, na verdade, é um déficit de serviços públicos que garantam um atendimento digno à população, além da pouca valorização do funcionalismo, desde os baixos salários até as condições precárias de trabalho. 

Os proponentes e idólatras dessa reforma, estão pouco se lixando para as filas intermináveis nos hospitais e com a falta de profissionais para atenderem as necessidades mais básicas de saúde; não querem a melhoria da qualidade da educação, para eles uma ameaça para seu projeto de poder; o mal cheiro dos esgotos à céu aberto não é sentido de suas coberturas e casas de luxo e ainda se protegem do drama da violência em seus carros blindados e condomínios fechados. Sádicos e hipócritas, se apropriam do fundo público e blindam seus privilégios a partir das estruturas do Estado, deixando, quando muito, algumas migalhas pra nação.
 

Edição: Monyse Ravena