Rio Grande do Sul

Coluna

O estúpido argumento usado desde o tempo das cruzadas

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Camponeses cristãos durante o conflito de 1860 no Monte Líbano - Reprodução
Estimular o sectarismo é parte da linha do inimigo imperialista

O fantasma do pogrom de cristãos do Oriente Médio é um argumento usado com muita frequência para manobrar lealdades de populações inteiras. Desde os tempos das cruzadas romanas e bizantinas, passando pelas investidas francesa, austríaca e britânica no século XIX, até a forma contemporânea de discurso sionista neopentecostal, a suposta “defesa da cristandade” vem sendo evocada. A formação do Líbano, da Síria e a própria invasão sionista da Palestina implicam nessa manobra. Particularmente, assim como milhões de árabe-brasileiros, cresci ouvindo um mito falsificado. Por parte de pai venho de família libanesa (maronita) e, mesmo tendo sido formado politicamente por um avô pan-arabista e pró-Palestina, o discurso da chancelaria francesa entrava no imaginário dos filhos, netos e bisnetos dos mascates da primeira leva que desembarcou do navio imigrante.

Na maturidade (etária ao menos), quando retomo a pesquisa das raízes e da formação do Líbano moderno, redescobri o óbvio. Além do sectarismo, houve uma luta camponesa de proporções épicas no Monte Líbano. Antes, uma revolta árabe na Palestina protagonizada por camponeses (fellahs) sela o destino dos povos até a conspiração Sykes-Picot-Sazanov. Vejamos a confluência da conspiração europeia, a incompleta modernização otomana e a luta justa das famílias camponesas árabe-libanesas.

Sectarismo, revolta camponesa e intervenção europeia

Em 1842, os representantes europeus junto ao Império Otomano convenceram ao sultanato de Abdulmejid I sobre a necessidade da divisão da parte central e norte do território que forma o Líbano moderno em dois governos locais. O duplo governo, Qaimaqamate, na denominação das autoridades otomanas, antecede o conceito de Mutasarrifate (equivalente ao governo de um conjunto de distritos). Este seria subordinado a um governo mais amplo, de uma região inteira (como o Levante), denominado de Vilayet (segundo nível mais importante da administração otomana). Esta denominação, iniciada na reforma administrativa de 1861, marca uma das fases do período Tanzimat - o da modernização otomana – onde já havia uma idealização eurocêntrica nas estruturas decisórias.

O governo de uma microrregião (de distritos) costumava atender tanto o perfil demográfico como a permanência das estruturas de poder territorial, em que a população camponesa garantia obediência aos senhores de terra locais, sob a liderança de uma espécie de consórcio de sheikhs proprietários. Dois governos locais foram estabelecidos. Um na parcela norte do antigo Emirado do Monte Líbano, sob um Qaimaqam (governador) maronita e aliado de melquitas. Outro, mais ao sul, de maioria druza. Ambos subordinados formalmente ao governo de Sidon, mas na prática sob a tutela militar de Damasco.

Com a divisão em dois governos sectários de estruturas oligárquicas e concentradoras de renda, o campesinato não apenas era explorado na sua força de trabalho, como também devia “obediência” a quem lhe oprimia. Em 1834, a grande revolta árabe na Palestina, protagonizada por fellahs e alguns chefes de clãs revoltosos gerou o exemplo que a Cananeia e o Levante necessitavam (DOI:10.5743/cairo/9789774162473.003.0005). Em 1858, o impacto dessa grande rebelião se materializa sob a liderança de Tanyus Shahin, um condutor de mulas e líder nato dos pagadores de tributos aos “nobres Khazen”. A massa camponesa e suas guerrilhas irregulares conseguiram estabelecer uma República no Distrito de Kersewan (capital Jounieh), de maioria maronita. Quando a luta se expande para o território de maioria druza, a lealdade sectária supera o interesse de classe.

Não para aí. No início dos dois Qaimaqam, o governo de maioria maronita tinha relações privilegiadas com a França. Já o governo druzo era bem relacionado com o Império Britânico e também tinha melhores conexões em Damasco e Istambul. Desde 1523 havia um “acordo” que assegurava a França como potência “protetora das populações cristãs do Monte Líbano”. Como afirmado acima, a revolta camponesa quando chegou ao território da “montanha druza” aumentou a tensão sectária e acionou as lealdades externas. No ano de 1860, uma correlação de forças sectárias desfavorável levou ao grande massacre de 1860, tendo como alvo a população cristã. A França foi vista como a única saída dos “católicos do Oriente”. No século XIX, Napoleão III fez a mesma demanda, deixando evidente que o tratado informal de proteção assegurava garantias para a população maronita e suas estruturas de poder. Resultado: em agosto de 1860 mais de 12 mil soldados europeus invadem o Levante, sob o aval do 31º sultão otomano.

Vale observar um “detalhe”. Quem mais incentivou a divisão do Emirado do Monte Líbano em dois governos sectários foi o ministro de relações exteriores do Império Austríaco (casa dos Habsburgos), o chanceler Klemens von Metternich. O sectarismo prevaleceu, além da injustiça no controle de terra, tributação e alistamento para campanhas de guerra ou defesa dos nobres Khazens. A revolta camponesa é derrotada em 1861, mas deixa o seu exemplo. Já o fantasma da intervenção de cruzados no Levante permanece operando como um estúpido discurso de legitimação do imperialismo. O Emirado do Monte Líbano, dissolvido para dar lugar aos qaimaqan maronita e druzo, embora mantivesse o poder da “nobreza levantina”, tinha relações de suserania com Istambul e na última fase, era regida pela dinastia Shihab, clã não sectário. Como sempre a manobra se repete. Quando as tropas de Bush Jr. entraram em Bagdá, no ano de 2003, uma das primeiras metas era romper o tecido social composto de mais de um milhão de famílias com credo religioso plural.

Estimular o sectarismo e tentar a vinculação dos cristãos de origem árabe como apoiadores dos invasores europeus é parte da linha do inimigo imperialista.

A população de credo cristão no Líbano, Síria e Palestina é fundamental na resistência

Não podemos negar a história do Grande Oriente Médio, Levante e Palestina. Seria incorreto afirmar que jamais houve conflito sectário, assim como é um absurdo o argumento sionista de que a Palestina seria “uma terra despovoada”. O mesmo se dá na pertença dos ritos e comunidades cristãs do Oriente. Data do ano 1.000 após o assassinato por Roma do profeta Issa (o brimo Jesus, palestino), logo nem a ortodoxia bizantina e nem o apostolado romano são mais antigos do que a cristandade que depois se torna arabizada.

A imensa maioria da colônia árabe no Brasil tem origens levantinas e cristãs, e o mesmo se dá na América Latina, incluindo a vigorosa comunidade palestina no Chile. Este baluarte palestino ao sul do mundo, carinhosamente chamada de “los baisanos”, igual apelido do glorioso Club Deportivo Palestino (https://palestino.cl/), é alvo de permanente campanha externa tentando associar as famílias imigrantes da Palestina exclusivamente às fugas da perseguição e dos pogroms sectários. Como já afirmado em artigos anteriores, o movimento nacional árabe, o nacionalismo árabe e a defesa intransigente da Palestina livre são ideias visceralmente ligadas às lideranças de origens cristãs do Oriente Médio. Ser de origem cristã não é sinônimo de apoiador do imperialismo europeu, embora, infelizmente, exista uma relação histórica do falangismo libanês com a potência francesa e, em tempos recentes, com os anglo-saxões.

Antes de terminar esse texto descobri a série libanesa Tharwat Al Fallahin (Rebelião Camponesa ou Peasants Rebellion) da produtora Eagle Films, disponível em algumas plataformas de conteúdo, incluindo o YouTube aberto. A obra de 2018, da autora Claudia Marchalian, é uma dramatização da luta camponesa no Monte Líbano da década de 1850 e deveria ser assistida por toda a descendência árabe latino-americana.

* Este artigo originalmente publicado no Monitor do Oriente Médio  (www.monitordooriente.com)

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), de origem árabe-brasileira, é cientista político, professor de relações internacionais e de jornalismo e colunista do Monitor do Oriente Médio.

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Edição: Marcelo Ferreira