Rio Grande do Sul

Coluna

"O Futuro não é mais como era antigamente"

Imagem de perfil do Colunistaesd
No dia 17 de fevereiro de 2021, desapareceu mais um de nossos povos milenares. Nesta data o guerreiro Aruká, último homem da etnia Juma, morria de covid - Leonardo Melgarejo
Tudo que vive e respira, se conecta. “Sou porque somos”, diz a sabedoria ubuntu

Entendida por muitos como indicativa de crise do sistema capitalista, apontada pelo papa Francisco como crise humanista de base ética e moral, anunciada por outros como sinal do fim do mundo, e até reclassificada por especialistas como sindemia global e não simples pandemia, isto que aqui no Brasil percebemos como retrocesso civilizatório pode ajudar a entender a importância da ecologia, em sua abrangência vital.

Simplificando: O todo é mais do que a soma das partes. As partes não são independentes. Operacionalmente, “em separado” elas sequer existem. Há uma funcionalidade metabólica, por assim dizer, que une absolutamente tudo, e que permite desde a divisão celular, em microbactérias, até a circulação da água, entre oceanos e montanhas. Tudo que vive e respira, se conecta. “Sou porque somos”, diz a sabedoria ubuntu. E no todo que disso se forma, a partir das inter-relações, é que “a vida” opera. Este “metabolismo” induz a processos de diferenciação que permitem melhor aproveitamento da luz, da água e do espaço. A circulação da água, internamente a cada uma, e entre todas as partes, como o sangue, os fluidos, os vapores, as nuvens e os rios, assegura conexões em todos os níveis. Esta é uma das verdades que, como escreveu Suassuna, no Auto da Compadecida, “...por que é, não sei. Só sei que é”.

As diferenciações nas formas de vida, explicadas por Darwin, geram redes que se autossustentam, em um equilíbrio que é sempre dinâmico, porque é evolutivo. Existem trocas, superposições e especializações, com surgimento e substituições constantes, de espécies e populações. Assim, a vida se diversificaria em resposta a regras adaptativas, que a orientariam em função de alterações ocorridas num ambiente em transformação permanente. A vida afetaria o ambiente, que afetaria a vida, impulsionando evolução, especialização e diversificação. Assim, nos biomas muito antigos, como o Cerrado, existiriam plantas polinizadas por um único tipo de inseto, sementes que para germinar precisaram passar pelo intestino de um único tipo de mamífero que garantiria sua dispersão, entre outras maravilhas. Na rede da vida existiriam relações muito mais sofisticadas do que conseguimos entender, e todas as espécies teriam sua importância e funcionalidade.

É simples assim: as relações com o ambiente geram processos seletivos que “qualificam” as espécies e populações para se ajustarem ao ambiente, à medida que ele vai sendo modificado.

Pois bem, nos tempos atuais chegamos a um ponto onde esta regra se inverteu. No último século, a diferenciação das espécies e dos ambientes está se reduzindo, sendo simplificada de forma drástica, por ação do homem, em função do sistema econômica dominante. Estes processos de homogeneização podem ser percebidos em tudo. Considere-se, por exemplo, a expansão da soja, que ao reduzir a biodiversidade determina seleção negativa de espécies, envenenamento das águas e crises ecológicas que vão bem além dos locais diretamente afetados. Ocorrendo em função de interesses de mercado completamente desrespeitosos à vida em si, estas eliminações da variabilidade local, expandindo-se de forma descontrolada, acabam impactando sobre o metabolismo ecossistêmico planetário.

Assim, a destruição de nichos ecológicos e a emergência de desequilíbrios em sistemas imunológicos vivenciados por pessoas e outros animais, na China, em Manaus, ou em qualquer lugar, acabam gerando mutações virulentas que migram entre as espécies, modificando hábitos, culturas, modos e horizontes de vida. Acabam afetando a todos, no planeta inteiro. O aquecimento global e as rações transgênicas; os campos de concentração de aves, porcos, peixes e refugiados humanos; as modificações de baciada nas leis ambientais, e o avanço sobre as terras indígenas; as novas igrejas e a venda de armas; os agrotóxicos, as doenças, os remédios e as vacinas que se retroalimentam; cloroquina, a privatização do banco central, a destruição das soberanias nacionais e o medo que nos angustia a todos... todos estes sintomas emergem de um mesmo sistema radicular. São indicativos de uma crise ecossistêmica global. Existem para atender ao interesse de poucos, e com o serviço de capitães de mato e governos fantoches, não apenas os direitos humanos estão deixando de existir como a própria vida está ameaçada.

Passamos daquele momento em que os mandantes praticavam o “dividir para conquistar” ao de agora, onde a regra é “eliminar para controlar”. E avançamos desprezando todos os conceitos de base ética, em processos de simplificação planejada, destrutiva, que se opõem à diversidade e, portanto, ameaçam a capacidade de resiliência ecossistêmica global. De início pretensamente dirigida aos excluídos, aos pobres, aos fracos, esta avalanche destrutiva perdeu controle e agora se esparrama endoidecida sobre todas as dimensões. Na economia, na arte, na literatura, em todas as formas de ser e de viver, se avolumam a miséria, a ignorância e a apatia. Vejam que em abril do ano passado, quando as mortes por covid-19 no Brasil alcançaram 474 pessoas/dia, nosso presidente disse: “E DAÍ?”. Esta deve ser a mais emblemática de todas suas falas irresponsáveis. Neste dia de 18 de fevereiro de 2021, dia em que morreram 1.367 brasileiros, o tema no Planalto bolsonarista girava em torno do deputado Daniel Silveira. Talvez, por isso, enquanto a preocupação era se o ministro do STF merecia ou não apanhar com gato morto até ele miar, como sugeria o deputado, uma outra notícia passava desapercebida.

Na mesma data, a Via Campesina Internacional (LVC) apresentava uma cartilha tratando dos direitos dos camponeses, das camponesas, dos povos e comunidades esquecidos. O documento ilustra nossa responsabilidade coletiva para com direitos fundamentais desrespeitados em várias partes do mundo, ao limite do mínimo já acordado universalmente na Declaração dos Direitos Humanos.

A importância deste evento reside no protagonismo que cabe a todos nós, em defesa da vida, e pode ser ilustrada por nossa alienação em respeito a outra notícia de ontem, tão atual quanto ignorada pelo governo e pela nação brasileira. No dia 17 de fevereiro de 2021, desapareceu mais um de nossos povos milenares. Nesta data o guerreiro Aruká, último homem da etnia Juma, morria de covid.

O povo Juma, que ali se extinguia, há poucos anos, na década de 1970, contava com 15 mil indígenas. Desprezados, acossados, explorados, eles foram sumindo aos poucos até que as três filhas de Aruká acabaram tendo que casar com indígenas Uru-Eu-Wau-Wau. Elas agora fazem parte, como seus filhos e netos o farão, daquele outro povo, com seus diferentes costumes, mitologias, conhecimentos e crenças.

A perda é irrecuperável, e não anda sozinha.

Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), até 11 de fevereiro, em Rondônia, haviam 2.157 indígenas infectados com a covid-19. No Amazonas, seriam 8.674. Naqueles dois estados estariam identificados 289 mortos por covid, que se distribuiriam entre os povos Aikanã, Arara Karo, Cinta Larga, Kanoê, Karitiana, Karipuna, Kassupa, Kempe, Makurap, Mura, Oro War, Paiter Suruí, Parintintin, Piripkura, Puruborá, Sakirabiat, Tupari e Wajuru, onde a doença está identificada.

O conhecimento, a história, a cultura e o autorrespeito que, eventualmente, poderíamos levar adiante jamais serão as mesmos. Mas e, “e daí?”, diria o presidente.

Bom. Segundo Renato Russo, “daí que”, se para alguns, o futuro não será mais como era antigamente, para outros ele jamais o será.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira