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Pandemia na América Latina e Caribe: entre o alto custo da comida e a falta de renda

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Homem segura cartaz pedindo comida durante a pandemia. - Foto divulgação
Quanto mais o povo passa fome, menos consegue se isolar.

Por Beatriz Gomes Cornachin*

Aproximadamente um ano após o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil, a primeira semana de março de 2021 tem um novo marco: o maior número de óbitos desde o início da pandemia no país. Em apenas um dia, 1.910 pessoas faleceram em decorrência da doença. Também durante a primeira semana do mês, o programa de televisão “Profissão Repórter” exibiu uma dura reportagem sobre o aumento da fome no país, com destaque para o estado da Paraíba. 

Essas duas tristes questões – o aumento da fome e o aumento das mortes pela COVID-19 – são coisas relacionadas. Quanto mais o povo passa fome, menos consegue se isolar. Quanto menos se isola, mais se expõe a riscos. Quanto mais durar a pandemia, menor a chance de diminuir a fome, porque a economia não conseguirá se recuperar. E, assim, forma-se um círculo vicioso. 

Para entender melhor essa questão, que afeta diversos países no mundo, é interessante conhecer alguns dados sobre o custo da alimentação e a renda das pessoas. Sobretudo, é importante entender que o descompasso entre o preço dos alimentos e o dinheiro disponível crescia já antes da pandemia. De fato, em relatório de 2020, intitulado “Estado da Insegurança Alimentar no Mundo”, a Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas, a FAO, concluiu que uma das principais causas para o aumento da insegurança alimentar e nutricional no mundo está relacionada ao preço das dietas. 

De 2014 a 2019 (portanto, antes da pandemia), a América Latina e o Caribe presenciaram um aumento de 22,9% para 31,7% de famílias sem acesso regular à alimentação, totalizando 205 milhões de pessoas. Este cenário de aumento da fome contrasta com os avanços registrados durante a vigência do pacto global denominado Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de 2000 a 2015, quando foram observados resultados exitosos na redução do número de pessoas famintas, destacando-se o caso do Brasil, que saiu do Mapa Mundial da Fome da FAO em 2014. 

Contudo, mesmo a partir de 2014, um ano antes do término da vigência dos ODM, o número de famintos voltou a crescer no mundo e no Brasil. De acordo o relatório da FAO, todas as regiões do mundo estavam se distanciando da segunda meta dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), “Fome zero e agricultura sustentável: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”. Os ODS, que substituíram os ODM, estabeleceram, como uma de suas metas, que todos os países deveriam acabar com a fome até 2030. Nada parece mais longe na América Latina e Caribe.

Para entender por que isso está cada vez mais distante, é importante ter um panorama do custo da alimentação frente à chamada linha internacional da pobreza. Atualmente, considera-se que as pessoas que ganham menos de 1,90 centavos de dólar por dia, o equivalente a R$ 10,64 reais em 03 de março, estão em condição de pobreza. No mês, isto equivaleria a R$ 319,20. Pois bem, de acordo com a FAO, na média mundial, o custo diário das dietas se configura da seguinte maneira: 0,79 centavos de dólar por dia apenas para suprir as necessidades energéticas (calorias); dietas nutritivas custam 2,33 dólares por dia e dietas saudáveis custam 3,75 dólares diários. A preço de hoje, isso corresponde a R$ 4,42, R$ 13,04 e R$ 21,00 por dia, respectivamente. Em termos mensais, seriam R$ 132,60 para a dieta mais básica, ou seja, completamente pobre em nutrientes; R$ 391,20 para dietas nutritivas; e R$ 630 para dietas saudáveis. 

Quer dizer, as pessoas que se encontram abaixo da linha de pobreza não têm acesso às dietas que suprem necessidades nutritivas básicas e muito menos às saudáveis. Podem até ter algo no estômago, mas seus corpos estão vazios de nutrientes que garantem a boa saúde e a imunidade contra doenças. Em um cenário de pandemia, no qual as pessoas estão suscetíveis a contrair o vírus e a depender de uma série de fatores, inclusive da resposta do seu sistema imunológico, o acesso – e especialmente a falta de acesso – às dietas saudáveis deve ser tema prioritário. Infelizmente, mesmo antes de 2020, ao menos 3 bilhões de pessoas no mundo não tinham acesso a dietas saudáveis. 

Para a FAO, uma dieta adequada e saudável deve levar em consideração a presença de macronutrientes presentes em proteínas, gorduras e carboidratos, e micronutrientes essenciais, vitaminas e minerais. Para isso, é preciso consumir diariamente ao menos 400g de frutas e vegetais e evitar consumo de produtos industrializados com elevado teor de gordura saturada. 

Vejamos os custos das dietas na América Latina e no Caribe na tabela abaixo: 


Estado de Insegurança Alimentar no Mundo, 2020. Dólar convertido a R 5,68. / FAO

Para deixar a coisa mais concreta, vamos olhar mais especificamente o caso de três países em relação ao preço das dietas saudáveis (as mais adequadas, que apresentam custo mais elevado) e à porcentagem de pessoas que não conseguem acessá-las, no ano de 2017. No caso da Argentina, o custo era de 3,72 dólares por dia (R$ 20,83 ou, ainda, aproximados 335 pesos argentinos) e 9,2% da população não tinha essa renda. No caso do Brasil, o custo era de 3,03 dólares diários (R$ 16,96) e 14,5% das pessoas não alcançavam esse patamar. Por fim, o último exemplo, constitui o país que apresenta maior porcentagem de inacessibilidade a dietas saudáveis da região, o Haiti. Nesse caso, o custo é de 4,91 dólares (377 gourdes haitianos) e 88% das pessoas não tinham acesso a uma dieta saudável. 

Vejamos abaixo a tabela com o custo da dieta (em dólar) e a porcentagem de pessoas que não têm acesso a ela de acordo com países selecionados pela FAO:
 


Estado de Insegurança Alimentar no Mundo, 2020 / FAO

Para agravar a situação, a inflação de alimentos na América Latina e Caribe subiu de 3,2% em 2018 para 4,1% em 2019 e, já nos primeiros seis meses de 2020, para 4,4%. A diminuição da renda, por um lado, e elevação do preço da comida, por outro, fazem com que as pessoas troquem alimentos frescos por alimentos com maior teor de açúcar, industrializados, e, ainda, levam à necessidade de pular refeições. 

No caso do Brasil, temos presenciado um aumento gritante nos preços das cestas básicas (que é a que está mais próxima da dieta energética, isto é, quase sem nutrientes). De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), durante o ano de 2020, as cestas básicas tiveram um aumento em todas as capitais do país, sendo que, em janeiro de 2021, o preço da cesta básica foi de R$654,15 em São Paulo (64,29% do salário mínimo). Dentre os alimentos que experimentaram alta no decorrer do ano de 2020, o arroz e o óleo de soja evidenciam a fragilidade das políticas voltadas ao mercado interno, sendo que um dos fatores que mais impactaram na alta foi o aumento da exportação de commodities agrícolas. No caso do arroz, principal alimento da população brasileira, o aumento das exportações veio acompanhado de anos de diminuição da área cultivada. 

No cenário pandêmico, os países adotaram medidas diversas de combate à fome. Por exemplo, conforme se lê na plataforma Food and Agriculture Policy Decision Analysis Tool da FAO, a Argentina adotou políticas de respaldo aos pequenos agricultores e comunidades indígenas afetadas pela pandemia a partir de financiamento direto e, no início da pandemia, estabeleceu que produtos da cesta básica não tivessem aumento para o consumidor final. Aplicou, também, subsídio para fornecedores de leite e produtos derivados. No caso do Brasil, a principal política foi a do auxílio emergencial a partir de transferência de renda de acordo com diversos critérios estipulados. Além do auxílio emergencial, outras políticas foram adotadas, tais como a entrega do que seria a merenda escolar para as famílias mesmo com a suspensão das aulas. 

Contudo, é importante registrar que o auxílio emergencial chegou tardiamente e que teve seu valor reduzido enquanto o preço dos alimentos subiu; e que os trabalhadores e trabalhadoras rurais foram excluídos da possibilidade de auxílio. Ainda sobre os trabalhadores do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), presenciamos a continuidade da política de despejo de assentamentos há muito estabelecidos, tais como o assentamento Quilombo Campo Grande, no sul de Minas Gerais, em que tropas de choque expulsaram mais de 450 famílias. O MST que, inclusive no início da pandemia, registrou elevadas doações para famílias desamparadas. 

Enfim, a necessidade de trabalhar para ter o que comer é uma realidade para a maioria das pessoas da América Latina e Caribe. Em alguns casos, a atividade remunerada passou a ser exercida em regime home office e, mesmo nesse cenário, as preocupações de sobrecarga e estresse não podem ser desconsideradas. No entanto, basta pouco tempo à frente de uma televisão ou na internet, acompanhando imagens de estações de metrô e das paradas de ônibus em outros países e no Brasil, para perceber que uma parte enorme das pessoas precisou continuar se expondo a aglomerações para ter sua remuneração. São trabalhadores e trabalhadoras formais e informais, estes ainda mais vulneráveis por terem menos direitos. São também os desempregados e desempregadas, e suas crianças. Portanto, as autoridades precisam entender que combater a fome e promover o acesso a dietas saudáveis são esforços fundamentais para vencer a luta contra a pandemia da COVID-19. Do contrário, as pessoas ficarão famintas e expostas ao vírus, entre a falta de renda e a alto custo da alimentação.


*Doutoranda em Economia Política Mundial – Universidade Federal do ABC (UFABC). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) da UFPB.

Edição: Henrique Medeiros