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Bacurau e a autorregulação: uma análise cinematográfica reichiana

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"Os moradores de Bacurau me pareceram inspirados em uma série de arquétipos de força" - Divulgação
Estamos, enquanto sociedade, com a imunidade bem baixa. Precisamos recuperar nossa vitalidade

Na coluna de hoje eu resolvi me arriscar e escrever uma análise reichiana sobre um filme. Preparados? Apertem os cintos. Contém spoiler!

O filme Bacurau foi lançado em agosto de 2019. A história se passa no Brasil de um tempo futuro, onde uma pequena comunidade vive sua rotina de cidade pobre nordestina do sertão (a mesma que se vive hoje, a mesma que se viveu no passado). Explorados politicamente pelo prefeito, meninas jovens prostituídas sendo abusadas, recursos sanitários escassos, descaso e cinismo governamental com a população, precariedade, secura.

No começo do filme, os moradores de Bacurau notam que sua cidade saiu do mapa. Ao mesmo tempo, a internet de todos foi cortada. A trama vai ficando cada vez mais tensa, enquanto descobrimos, pé ante pé, o que estava causando essas “alterações” na rotina do povoado.

Um grupo de excêntricos europeus e americanos (habitantes do tal primeiro mundo), ricos sádicos e querendo passatempos sangrentos em que torrar seu dinheiro, se organizaram para promover na cidade uma caçada supremacista, matando seus habitantes e removendo o local da face da Terra.

Ao longo do filme, para nossa surpresa, testemunhamos que os moradores de Bacurau – pobres, desnutridos, cansados, sem recursos – estavam organizados, e conseguiram neutralizar a ameaça à sua existência, destruindo os invasores, de uma forma coordenada, precisa, direta, unidos, integrados e sem titubear.

Foi lindo de ver, para mim.

Os moradores de Bacurau me pareceram inspirados em uma série de arquétipos de força, e em uma série de histórias que estão enraizadas na cultura brasileira sobre o nordeste ou sobre a resistência de nosso povo. Personagens típicos da história, literatura, música, e cinema de melhor qualidade que já produzimos, que representam a garra, a vontade de viver e a rebeldia criativa ao que nos sufoca e ameaça.

Lembro de ter saído da sessão de cinema muito eufórica e emocionada, com saudade do Grande Sertão: Veredas, do Auto da Compadecida e de Macunaíma, pensando na guerra de Canudos, em Luiz Gonzaga, nos quilombolas e cangaceiros, e me sentindo parte dessa corrente, filha dessa cultura e portanto herdeira dessa capacidade de reviravolta e de seguir adiante e lutar pela minha vida e por aquilo que eu amo.

Se pensarmos na sociedade como um organismo, poderemos associar a ação de resistência de Bacurau a uma resposta imunológica saudável – baseada em uma identidade biológica bem constituída, que separa, portanto, o que é nocivo daquilo que é mantenedor da integridade do organismo: pessoas conscientes de sua responsabilidade coletiva, organizadas e focadas em retomar sua possibilidade de viver, fazendo o que, naquele contexto, era necessário para isso.

Desse ponto de vista, o interessante do filme, o que reforça para mim a ideia de que eles agem como um organismo, é o fato de que não há política para organizar a ação do povo. Há lideranças, mas não há necessidade de um trabalho de convencimento, de organização que parta de fora e tente gerenciar mecanicamente a resistência para que ela aconteça. A resistência se dá nas bases do pertencimento comunitário e da qualidade do vínculo que havia entre as pessoas.

Eles estavam integrados como um corpo sadio, sua ação foi espontânea, baseada em sensações lúcidas a respeito da realidade e dos desafios impostos por aquelas circunstâncias, em um tipo de conexão fraterna e leal.

Reich nos falava de autorregulação como a capacidade do organismo de se manter saudável a partir de seus movimentos orgânicos espontâneos, que responderiam, se livres, de maneira adequada e autopreservadora às oscilações do ambiente.

Ele falava também que em uma sociedade constituída por organismos cujo funcionamento sexual e emocional fosse livre, funcionaria o princípio da democracia do trabalho, uma espécie de gestão social baseada em autorresponsabilização espontânea. Os trabalhadores, conscientes de seu papel social, se colocariam à frente das atividades vitais para a sociedade. Essa gestão seria organizada pelas funções do amor, trabalho e conhecimento.

Obviamente não seria perfeita e livre de conflitos, mas seria mais racional, justa, baseada no prazer e no amadurecimento adequado das funções humanas (afetivas, cognitivas, intelectuais, éticas, relacionais, etc.), que conduz à autonomia e à regulação da vida de maneira prazerosa e interessada.

Relacionando Bacurau à autorregulação, fico olhando para o que se passa atualmente em nosso país, essa tentativa de extermínio da população por figuras de poder sádicas e doentes… Me pergunto onde está nossa resposta coordenada e sadia a esta situação, se vamos conseguir reagir, como um corpo, e recuperar nosso funcionamento saudável, preservar nossa estrutura e nossas instituições.

A passividade atônita, a revolta silenciosa e impotente em alguns casos, ou a conivência aberta em outros, são as respostas mais comuns à proposta bolsonarista de matança e carnificina. Isso, para mim, é um sintoma claro de que estamos, enquanto sociedade, com a imunidade bem baixa, por assim dizer. Precisamos urgentemente recuperar nossa vitalidade.

Descrição da imagem: trata-se da fotografia de uma cena do filme Bacurau, em que os principais personagens da história estão reunidos em um semi círculo em volta de um buraco cavado na terra após terem conseguido derrotar os invasores da cidade. Eles estão com expressões sérias ou determinadas no rosto. Alguns estão com as roupas sujas de sangue. Em volta do buraco na terra há algumas pás, e dois personagens estão segurando armas de fogo. Atrás deles, o céu do entardecer, com algumas nuvens e pássaros voando.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko