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A pandemia como guerra: o povo combatente em meio à fome e ao desperdício

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Reprodução - Marco Favero
Não adianta dar um fuzil para o Zé Gotinha se combatentes - o povo - não tiverem condições de lutar.

Por Thiago Lima*

Nós nos acostumamos a ouvir e a dizer que a pandemia da Covid-19 é uma guerra. A qualidade da metáfora, para nós, brasileiros, talvez não seja a melhor, pois o presidente-capitão e o governo militarizado estão fazendo um péssimo trabalho para proteger vidas e para enfrentar o vírus em suas consequências diretas e indiretas. Talvez seja justamente porque os militares são treinados para a Defesa Nacional, e não para lidar com a Saúde Pública em sentido amplo. Mas vamos dar uma chance para a metáfora da guerra contra o coronavírus? 

Quem estuda os assuntos militares sabe que o poder só pode ser projetado para enfrentar o inimigo se houver recursos básicos e meios logísticos para se chegar ao combate de fato. Não adianta dar um fuzil para o Zé Gotinha se outros combatentes – dentre eles, o povo – não tiverem condições de lutar. E uma das condições fundamentais para a luta é a alimentação. Um exército bem alimentado, luta melhor. Um exército com fome, sucumbirá mais facilmente. 

Se aceitarmos que, na luta contra o coronavírus, todas as pessoas são combatentes – ainda que uns na linha de frente e outros mais recuados –, todas as pessoas precisarão receber recursos adequados. Inclusive as crianças. A alimentação adequada favorece a imunidade (aumenta a defesa) e mantém as tropas bem entrincheiradas (em isolamento e distanciamento sociais), isto é, com menor necessidade de ir ao campo de batalha e se expor ao inimigo. 

Então, no setor alimentar, o que seria de se esperar? Que os recursos alimentares fossem mais bem geridos. Na guerra, é importante racionalizar os recursos e, sobretudo, evitar o desperdício. Afinal, desperdiçar recursos – como os alimentos – significa que as tropas poderiam estar mais bem preparadas e equipadas (máscaras, seringas, álcool em gel, oxigênio, etc.). Além disso, desperdiçar alimentos significa desperdiçar imunidade, abrir flancos para o oponente.

Alguns dados do Brasil e do mundo, mesmo que anteriores à pandemia, nos ajudam a entender os desperdícios de recursos (e de saúde) que estamos vivendo agora. Seria de se esperar que o esforço de guerra gerasse incentivos para mudar as coisas, mas, ao que tudo indica, quase nada vêm sendo feito. No Brasil, para piorar, as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional estão sendo desmontadas. 

Se o mundo comesse de maneira mais saudável, haveria uma economia de aproximadamente R$ 17 trilhões de reais!

Segundo a Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO, na sigla em inglês), se todas as pessoas do mundo tivessem acesso a uma alimentação saudável, até 97% dos custos globais diretos e indiretos com Saúde poderiam ser reduzidos. Não é pouca coisa! Aliás, é quase tudo! Anualmente, os custos associados à mortalidade e às doenças não-transmissíveis, como diabetes, câncer e doenças cardiovasculares, somam cerca de 1,3 trilhão de dólares. Isso equivale a, aproximadamente, R$ 7,5 trilhões, que foi o valor do Produto Interno Bruto do Brasil em 2020. 

Se olhamos para o meio ambiente, uma alimentação saudável para todas as pessoas representaria uma economia de 41% a 74% nos custos sociais globais associados aos gases do efeito estufa, que são um dos principais dinamizadores do processo de catástrofe climática em plena marcha. Estamos falando de secas, inundações, geadas, nuvens de gafanhotos etc., em proporções cada vez mais bíblicas. Todos os anos, segundo a FAO, o padrão alimentar atual, isto é, com desperdício e não saudável para todos, produz um custo de 1,7 trilhões de dólares. Isso dá em torno de R$ 9,5 trilhões de reais. 

Quer dizer: se o mundo comesse de maneira mais saudável, haveria uma economia de aproximadamente R$ 17 trilhões de reais! Dinheiro que poderia ser revertido para a Saúde Pública, diminuindo a mortalidade, as doenças e o sofrimento de muita gente. E, de início, as pessoas já seriam mais saudáveis. 

Mesmo se deixarmos de lado o ideal da dieta saudável para todas as pessoas – o que não devemos fazer! –, os dados sobre o desperdício de alimentos no mundo são inaceitáveis. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, é possível que 17% da produção mundial de alimentos seja desperdiçada. Isso corresponde a cerca de 931 milhões de toneladas de comida desperdiçada em 2019, sendo que 61% deste total aconteceu nos lares, 26% nos restaurantes e serviços que fornecem refeições, e 13% no varejo. Esses são dados que não possuem um grau de confiança muito elevado, pois são poucos os países que pesquisam sistematicamente o desperdício alimentar. Contudo, isso não seria, justamente, uma ação importante num período de guerra contra uma pandemia que empobrece e esfaima as pessoas?

Mesmo que o acesso a alimentos adequados não esteja, exclusivamente, ligado ao desperdício, mas, sim, a toda uma cadeia produtiva, internacional inclusive, os dados nos possibilitam um panorama de como algo essencial à vida é desperdiçado, mostrando um grande indício da banalização da fome.

Enfim, os dados anteriores à pandemia mostravam que mais de 25% da população mundial vivia em insegurança alimentar severa ou moderada: mais de 2 bilhões de pessoas. Mais de 3 bilhões de pessoas no mundo não conseguiam ter uma alimentação saudável por causa do custo da comida: dietas saudáveis custam até 5 vezes mais do que as mais básicas e, nos países em desenvolvimento, cerca de 57% da população não consegue se alimentar bem, do ponto de vista nutricional, porque não têm dinheiro suficiente. 

No Brasil, o auxílio emergencial concedido até o final de 2020 e o novo auxílio, entre R$150,00 e R$375,00, não chegam perto de promover uma dieta saudável para uma família. A metáfora de combate à guerra poderia, ao menos, surtir algum efeito na logística de combate à desnutrição e insegurança alimentar, já que as questões militares parecem estar sempre na boca de quem diz que, no Brasil, não existe fome. 

O novo coronavírus pegou um mundo com tropas malnutridas, famintas, e isso deve ser importante para compreendermos o grau de mortalidade e de pessoas sequeladas. Após declarada a guerra, o que os governos do mundo têm feito para reverter esse quadro? O que o governo brasileiro fez para diminuir o desperdício e fortalecer a imunidade do seu povo combatente? 

 

*Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (fomeri.org) da UFPB.
 

Edição: Henrique Medeiros