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Cinco trilhões de dólares

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Em 11 de março o governo Biden anunciou um pacote de 1,9 trilhões de dólares para as famílias e trabalhadores desempregados, para ajudar na campanha de vacinação e apoiar governos estaduais e locais a diminuir seu déficit orçamentário. - ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP
Esses pacotes de Biden são agora um novo marco mundial.

Durante o mês de março, o governo estadunidense anunciou dois novos pacotes de estímulo à Economia no momento de retração econômica e pandemia. Ao todo, somando com medidas menos robustas em 2020, chega-se ao valor de cinco trilhões de dólares (em torno de 28,5 trilhões de reais), o correspondente a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos. Enquanto isso, o governo brasileiro destina apenas 44 bilhões em ajuda financeira às pessoas mais vulnerabilizadas pela pandemia em 2021, uma redução drástica em relação ao investido no ano passado, quando o auxílio emergencial foi de até R$ 1.200; agora vai variar de R$ 150 a R$ 375, com apenas quatro parcelas. Em 2020 o Brasil investiu 290 bilhões de reais no auxílio emergencial, que chegou a ter nove parcelas. Mesmo somando-se a ajuda aos que mais estão passando fome e sem emprego nestes dois anos no Brasil, é um valor irrisório comparado ao investimento dos Estados Unidos em termos absolutos e em percentual do PIB.

Em 11 de março o governo Biden anunciou um pacote de 1,9 trilhões de dólares para as famílias e trabalhadores desempregados, para ajudar na campanha de vacinação e apoiar governos estaduais e locais a diminuir seu déficit orçamentário. Mas 1 trilhão foi reservado às pessoas, com auxílio no valor de 1.400 dólares (7.390 reais) cada um ―mais que o dobro dos 600 dólares (quase 3.670 reais) aprovados no último programa de ajuda do Congresso―; um seguro-desemprego mais generoso, que passará de 300 para 400 dólares (de 1.580 para quase 2.110 reais) por semana e será estendido até setembro; licenças remuneradas para trabalhadores que adoeçam de covid-19 e subsídios mais amplos para cuidar dos filhos. Ao final do mês de março foi anunciado um pacote de 2,3 trilhões, e outros pacotes de estímulo devem ser lançados durante toda a gestão de Joe Biden. Nesse último anúncio, o próprio presidente usou o termo “New Deal”, que foi cunhado na década de 1930 pelo economista John Maynard Keynes, um projeto ambicioso de obras públicas e de infraestrutura, criação de empregos e estímulos do Estado às empresas, o que indica essa inspiração. 

Como um aprimoramento e atualização dessa experiência anterior, que conseguiu superar a grande recessão de 1929 e levar aos Estados Unidos a uma posição de liderança econômica e política no Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, o plano atual pretende investir na reconstrução de estradas e pontes em todo o país, mas principalmente na montagem de uma ampla infraestrutura de produção de energia solar e eólica para diminuir a dependência dos derivados de petróleo e a emissão de carbono, responsável pelo efeito estufa na atmosfera. Também há uma compreensão da necessidade de massivos investimentos em Ciência, Tecnologia, Educação e Saúde, compreendendo a estágio avançado da 4ª Revolução Industrial em curso com suas inovações em Inteligência Artificial, robotização, nanotecnologia, computação quântica, biotecnologia, Internet das Coisas, impressão 3D e veículos autônomos. 

A 1ª Revolução data de 1784, com a utilização do carvão, a produção de energia hidráulica e a vapor e a montagem das fábricas modernas; a 2ª Revolução tem um marco em 1870 com a utilização da energia elétrica e a massificação da produção. A partir desse momento e durante todo o século XX o Petróleo se torna a principal matéria prima para produção de combustíveis fósseis e insumo para produção de milhares de produtos do cotidiano moderno. A 3ª Revolução Industrial se inicia em 1969, com o início da automação dos processos, e a 4ª Revolução (ou Revolução 4.0) diz respeito a processos autônomos governados por tecnologias cibernéticas, a presença da internet em todos os aspectos da vida e da produção e a destruição de milhões de postos de trabalho. Segundo a Organização internacional do Trabalho, em projeções de antes da pandemia, 300 milhões de empregos seriam destruídos nesse momento e nos próximos dez anos pelas inovações tecnológicas. Por isso deve-se estruturar a Sociedade para novas ocupações e atividades no mundo do trabalho.

Os Estados Unidos, a principal potência dos países capitalistas, tenta se reposicionar num mundo em rápida mudança social e no mundo do trabalho, avanços tecnológicos inéditos, mudanças climáticas destruidoras da possiblidade de vida humana na Terra, riscos para a Saúde Pública mundial que devem ser enfrentados nas próximas décadas, e num ambiente geopolítico em que seu poder não é mais único e imperial. A China, numa articulação que envolve a Rússia e a Organização de Xangai com diversos países do Oriente, Oriente Médio e ex-repúblicas soviéticas, está implementando a “Nova Rota da Seda” Esse projeto integrará toda a Ásia e Europa com uma infraestrutura forte de estradas, portos, aeroportos, ferrovias, oleodutos, visando uma integração econômica e um desenvolvimento social e econômico inéditos no planeta. Hoje a China já é o segundo maior PIB mundial, caso utilizemos o parâmetro do valor de compra do dólar; caso utilizemos o outro critério usado pelo Fundo Monetário Internacional de levar em conta o valor de compra da moeda local, a China já tem o maior PIB. De qualquer maneira, a terceiro lugar em PIB já é a Índia, superando qualquer país europeu. A tecnologia de internet da 5G chinesa concorre e vence os estadunidenses em vários mercados, além de sua produção industrial ser a maior do mundo e ela ter se convertido na principal potência exportadora, especialmente de produtos industrializados. 

Esse reposicionamento dos Estados Unidos com esse novo protagonismo do Estado decretou a morte e enterro do “Neoliberalismo”

Esse reposicionamento dos Estados Unidos com esse novo protagonismo do Estado decretou a morte e enterro do “Neoliberalismo”, ideologia e programa engendrado durante os governos Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher na Inglaterra na década de 1980 e que foi alçado à posição dominante com o fim da Guerra Fria e o desmantelamento da União Soviética. Durante a década de 1990 e no início do século XXI foi hegemônico no Ocidente o programa do “Estado mínimo”, das privatizações das empresas estatais, da diminuição ou supressão dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, da suposta abertura dos mercados para um comércio desregulamentado, para a livre circulação de mercadorias, a completa desregulamentação do mercado financeiro e legalização de vários paraísos fiscais sem qualquer controle pelos Estados nacionais. 

Era um programa que se justificava na aparente derrota de um outro modelo social, o Socialismo, e sua projeção era de promover um crescimento econômico e de riqueza para as nações, entretanto isso não ocorreu. Na América Latina todos os países experimentaram estagnação econômica e manutenção ou aprofundamento das desigualdades sociais. Esse processo foi interrompido por governo progressistas em vários países entre 2001 e 2015, mas a vitória de forças neoliberais (como na Argentina, Colômbia, México) e alinhadas com os Estados Unidos em alguns países e golpes políticos parlamentares e judiciais (como no Brasil, Paraguai e Honduras) mudaram uma orientação desenvolvimentista latino americana para um retorno ao receituário do neoliberalismo e da austeridade fiscal.

No caso do Brasil esse retorno da austeridade ocorreu a partir do golpe que levou Temer ao governo em 2016 e da vitória manipulada da eleição de Bolsonaro em 2018 (vide a demonstração clara de uti9lização do poder judiciário para a vitória do Bolsonaro com a “Lava Jato”). Esse retorno do Neoliberalismo e da “austeridade fiscal” promoveram uma diminuição dos indicadores sociais, estagnação ou retração econômica e profunda reprimarização da economia.

Esses pacotes de Biden são agora um novo marco mundial. Os Estrados Unidos, para se manter no cenário geopolítico, hoje bem mais multilateral e com forte competição econômica e tecnológica do Oriente, e ao mesmo tempo enfrentar os desafios ambientais, raciais, sociais e tecnológicos, de forma cristalina adotou o Estado como principal promotor do desenvolvimento econômico. Essa promoção se dá pelo auxílio às famílias mais pobres com uma proposta clara de renda básica universal, com o planejamento estatal das políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico, com um investimento na Educação (escolas, professores, tecnologia) e no sistema de Saúde, e uma centralidade na Sociedade do Conhecimento.

o Estado com o papel necessário de planejador, promotor, investidor e empreendedor para termos um processo de reindustrialização, de transição ecológica, de investimento em redistribuição de renda e na Economia do Conhecimento

Essa situação fática desconstrói a ideologia da austeridade fiscal que desafortunadamente ainda impera no Brasil, ideologia que verbaliza que “assim como uma família não pode gastar mais do que ganha em salários, o Estado não pode investir mais do que arrecada”, uma bobagem para qualquer estudante inteligente de primeiro semestre de Economia na Faculdade desmistificar, pois os Estados não são famílias e podem sim investir mais para retomar um ciclo de crescimento econômico, como ficou patente com Keynes na décadas de 1930 e 1940, Biden em 2021 e a China de 1978 até os dias atuais. Essas experiências demonstram a necessidade de o Brasil repensar seu projeto de desenvolvimento econômico e de Nação, e colocar o Estado com o papel necessário de planejador, promotor, investidor e empreendedor para termos um processo de reindustrialização, de transição ecológica, de investimento em redistribuição de renda e na Economia do Conhecimento (Economia Criativa), fortes investimentos em políticas públicas de Saúde, de Educação e de Ciência e Tecnologia. 

O Brasil se defronta com a escolha de voltar a ser como o país de 1920, desindustrializado, exportador de comodities agrícolas e minerais, com alta exclusão social e atraso civilizatório; ou se tornar a nação desenvolvida, inclusiva, sustentável e avançada tecnologicamente que podemos ser pelos nossos próprios méritos.
 

Edição: Elen Carvalho