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Papo Esportivo | Os 80 anos do decreto que proibia mulheres nos esportes

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Museu do Futebol
Governo usava até mesmo "argumentos médicos" para justificar a proibição - Museu do Futebol
É claro que houve resistência e muitas mulheres foram presas jogando futebol.

No dia 14 de abril de 1941, o então Presidente da República Getúlio Vargas assinava o Decreto-Lei número 3.199. Ele estabelecia as bases de organização dos desportos em todo o Brasil e criava o Conselho Nacional de Desportos (o antigo CND), entidade responsável pela regulação e regulamentação de todos os esportes e suas respectivas federações e confederações no país.

Até aí, beleza. O grande problema (e tema da nossa coluna aqui no Brasil de Fato) estava no artigo número 54:

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”

A primeira coisa que aconteceu após a publicação do famigerado Decreto-Lei número 3.199 foi a proibição da prática do futebol feminino. Mas não era só isso. Ele impedia que as mulheres praticassem qualquer outra modalidade esportiva que fosse de encontro à “natureza feminina”. Pólo aquático, artes marciais e halterofilismo eram outros esportes proibidos.

Vale lembrar que era comum que as pessoas pensassem naqueles tempos que as únicas tarefas femininas se resumiam ao cuidado com o lar e a família e que não fazia sentido perder tempo com esportes tidos como “brutos”. 

É óbvio que houve resistência. O futebol (modalidade mais famosa e mais praticada no Brasil) era jogado em campos de várzea e em locais onde o Estado tinha difícil acesso. Muitas mulheres foram presas nesses tempos ao serem flagradas jogando futebol.

O governo usava até mesmo 'argumentos médicos' para justificar a proibição.

Alegava-se que a mulher que praticasse o velho e rude esporte bretão poderia levar cotoveladas no útero ou nos seios, fatos que poderiam deixá-la infértil ou sem poder amamentar.

Mas as coisas pioraram de vez no dia 2 de agosto de 1965 com a publicação da "deliberação número 7", assinada pelo General Eloy Massey Oliveira de Menezes, então presidente do Conselho Nacional de Desportos. Reproduzimos o texto abaixo:

“O Conselho Nacional de Desportos, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo disposto nos artigos 1º e 3º do Decreto-Lei n 3199, de 14 de abril de 1941 e em cumprimento à determinação contida no artigo 54 delibera:

1. Às mulheres se permitirá a prática de desportos na forma, modalidades e condições estabelecidas pelas entidades internacionais dirigentes de cada desporto, inclusive em competições, observado o disposto na presente deliberação.

2. Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball.

3. As entidades máximas dirigentes dos desportos do país poderão estabelecer condições especiais para a prática de desportos pelas mulheres, tendo em vista a idade ou o número incipiente de praticantes em determinada modalidade, observadas, porém, as regras desportivas das entidades internacionais.

4. No caso de desporto que não seja dirigido por entidade internacional, a dirigente no Brasil deverá solicitar ao CND a devida autorização para que possa ser praticado pelas mulheres.

Revoga-se as disposições em contrário.”

As coisas só melhoraram em 1979, com a abertura política nos últimos anos da ditadura militar e a revogação do Decreto-Lei número 3.199. Mesmo assim, as mulheres teriam que esperar mais quatro anos para que o futebol feminino fosse finalmente regularizado no país. Mesmo assim, o regulamento das primeiras competições da modalidade proibia a cobrança de ingressos e a tradicional troca de camisas ao final das partidas.

De 1941 até 1983, foram 42 anos de proibição. Mais de quatro décadas que, de acordo com a pesquisadora Katia Rubio, da Universidade de São Paulo (USP), atrasaram a história olímpica do Brasil de uma maneira imensurável. E as consequências são sentidas até hoje. Falta de incentivo, salários menores, péssimas condições de trabalho, falta de patrocinadores e vários outros problemas. Mesmo com o “boom” do futebol feminino a partir de 2019, com a ampla cobertura da Copa do Mundo Feminina ao vivo na TV aqui no Brasil.

E saindo do futebol feminino, outras modalidades também sofreram muito com o Decreto-Lei de Getúlio Vargas e com todo o preconceito de nossa sociedade. Apenas tentem imaginar quantos talentos poderiam ter surgido no boxe, no halterofilismo, no pólo aquático e em vários outros esportes se essa proibição não tivesse acontecido. Imaginem como seria o nosso desenvolvimento enquanto potência olímpica e paralímpica e também como país.

Não se esqueçam de que o esporte é extremamente benéfico para toda a sociedade. Reduz a probabilidade de doenças e contribui para a formação física e psíquica. Fora o grande número de empregos que gera quando falamos do esporte de alto rendimento.

É por isso que este colunista pede que todo dia 14 de abril passe a ser marcado por uma reflexão profunda sobre o que fizemos há 80 anos.

Por conta de preconceitos tolos, alijamos as mulheres da prática desportiva, destruímos a nossa história olímpica e sofremos com as consequências dos nossos atos até hoje. Por mais que a situação tenha melhorado muito, o caminho ainda é longo.

Temos um campeonato brasileiro de futebol feminino muito mais organizado do que nos tempos de Taça Brasil (torneio que merece destaque por ser o início de tudo com a ascensão do famoso Esporte Clube Radar nos anos 1980) e com muito mais visibilidade. Temos uma Seleção Feminina que é reconhecida mundialmente e jogadoras que marcaram seu nome na história do esporte.

Falo de Marta, Sissi, Pretinha, Cristiane, Formiga, Debinha e várias outras. Mas é impossível não pensar que poderíamos estar anos-luz à frente do que estamos hoje se não tivéssemos deixado o nosso preconceito vencer o esporte. 

O futebol e as demais modalidades femininas seguirão resistindo e nos fazendo vibrar imensamente. Mas não podemos nunca deixar de lembrar o que fizemos há 80 anos. Se em pleno ano do Senhor de 2021, ainda tem gente que insiste em falar de “mimimi”, de resultado e outras bobagens, o nosso dever de lembrar das consequências do Decreto-Lei número 3.199 é cada vez maior.

O dia 14 de abril merece, sim, muita reflexão. Revisar o passado para entender o presente e construir o futuro.

Chega de proibição. E chega de preconceitos bestas.

Edição: Eduardo Miranda