Rio Grande do Sul

Coluna

A culpa é de quem?

Imagem de perfil do Colunistaesd
O caso de Daniel Cady, mais conhecido como marido de Ivete Sangalo, é ilustrativo. A família contraiu o vírus e, sem hesitar, o patrão afirmou que a responsável pelo contágio é a cozinheira - Reprodução
A pesquisa Lancet aponta que a maioria das mortes por covid ocorre entre pessoas negras e pardas

Yayo Herrero, ecofeminista espanhola, lembra que nós seres humanos somos seres ecodependentes e interdependentes. Ao longo de nossas vidas individuais o presente, o passado e o futuro da espécie se encontram e nos impõe a necessidade de cuidados, conosco, com cada ser vivo com que temos contato e, necessariamente, com o planeta.

A pandemia da covid-19 evidencia o quanto a formação social sob a qual vivemos – capitalista, patriarcal e racista – é conflitante com nossas tais necessidades. E nosso país se notabiliza por sintetizar esses conflitos. 

Que o Brasil é um dos países mais desiguais social, política e economicamente todo o planeta já sabe. No entanto, o período pandêmico escancarou e aprofundou a distância abismal em que vivemos: atualmente, perto de 20% de nosso povo sofre com a fome.

No primeiro plano, aparece a contradição entre as recomendações de distanciamento e isolamento social como medidas de CUIDADO para evitar o contágio e propagação do vírus versus a impossibilidade da grande maioria da população, de cumpri-las.

Quem pode ficar em casa? E, entre as pessoas que podem ficar em casa, quantas ficam apenas com seu núcleo de convívio ou usam o espaço para aglomerações e encontros?

O caso de Daniel Cady, mais conhecido como marido de Ivete Sangalo, é ilustrativo. A família contraiu o vírus e, sem hesitar, o patrão afirmou que a responsável pelo contágio é a cozinheira que trabalha na residência, afinal ela tinha que ir para a própria casa nos finais de semana...

O que esta afirmação nos conta?

Provavelmente sem se questionar, Daniel fala a partir do ponto de vista da elite brasileira, da branquitute e da lógica patriarcal que constituem esse grupo social, sem considerar seus hábitos e ações como privilégios. Como atitudes que se apoiam necessariamente na opressão das demais categorias sociais.

Esse caso escancara quem pode e quem não pode ficar em casa neste momento. O quanto as mulheres – socialmente responsabilizadas pelo cuidado – são sujeitas a esse tipo de exposição. Podemos citar ainda inúmeras áreas em que somos maioria e assumimos a linha de frente na crise sanitária: saúde, comércio, serviços gerais e serviços domésticos e de limpeza de maneira geral.

O caso ganha notoriedade após completar um ano em que o país tomou conhecimento da primeira vítima fatal da covid-19 do Brasil. A mulher, também empregada doméstica, trabalhava em uma residência no Alto Leblon, Rio de Janeiro.  A sua patroa havia chegado de viagem à Itália e aguardava o resultado do teste para covid. Não fez isolamento e recebeu a trabalhadora em sua casa no domingo. No dia seguinte, os sintomas da trabalhadora, que tinha problemas de saúde e 63 anos de idade, iniciaram. A patroa ligou para a família da empregada e solicitou que a buscassem. A mulher faleceu na sequência.

Como pano de fundo, esse comportamento mostra coerência com a postura governamental e empresarial. Os grandes empresários não cumprem protocolos, demitem pessoal e ameaçam com fechamentos definitivos. Os governos estaduais e municipais por sua vez foram profícuos na publicação de decretos que incluíram trabalho doméstico entre as atividades essenciais durante a crise sanitária.

Essencial para quem?

Para a maioria de mulheres, principalmente negras, que se veem obrigadas a sair de suas casas, deixando filhas(os) sozinhas(os) em um momento em que sequer as creches e as escolas funcionam, ou para uma elite econômica que é, para além de classe dominante, uma casta senhorial?

A pesquisa Lancet, publicada em janeiro deste ano aponta que a maioria das mortes por covid ocorre entre pessoas negras e pardas e entre aquelas de baixa escolaridade. Estudo recente desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que toma como exemplo o estado de Pernambuco, mostra que 56% dos infectados no país são mulheres, enquanto 44% são homens.

Deu para entender quem tem direito a cuidados – quem é, portanto, considerada legitimamente humana(o) – e quem está a serviço de cuidar?

Clarisse Chiapinni - 8M/Greve Internacional de Mulheres

Maíra Freitas - 8M/Greve Internacional de Mulheres

Zadi Zaro - Col. Feminista Outras Amélias/Mulheres de Resistência e Luta

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko