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No meio desta pandemia, onde está Deus?

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"Com a pandemia essa escandalosa exploração e destruição não só se tornaram mais evidentes, como se acentuaram de forma assustadora e criminosa" - Foto: Divulgação / PMF
Deus sofre e nos convoca a acabar com esse sofrimento ou, ao menos amenizá-lo

Nesta noite escura que atravessa o mundo e, principalmente o Brasil, diante de tanta dor e sofrimento do povo por causa de uma crise sanitária, política, econômica e social agravada por um gestor incompetente e irresponsável, sem consciência e sensibilidade; ante da morte não de números, mas de pessoas com suas famílias enlutadas, ricas e pobres, sem fazer os ritos de despedidas mais completamente; perante a angústia, a ansiedade, a depressão, o pânico e outros transtornos psíquicos causados neste cenário onde há dias que mais morre gente do que nasce no Brasil e, nos sentindo “o próximo da fila” que possa vir a ter o covid-19 ou morrer em decorrência dele: diante, ante e perante podemos nos perguntar por onde anda Deus. 

É meu o grito do salmista. “Ó Senhor, por que ficais assim tão longe, e, no tempo da aflição vos escondeis?” ( Sl 10,1). “Até quando, ó Senhor, me esquecereis? Até quando  escondereis de mim a vossa face?” (Sl 13,2). Talvez possa até dizer, é nosso esse brado do semita. 

Grito muito mais ainda com Castro Alves em Navios Negreiros e Vozes da África diante do sofrimento do povo negro escravizado pelos cristãos nas Américas de um ponta a outra. Protestantes e católicos que também dizimaram muitos e tantos povos indígenas. Crime contra a Humanidade. Vergonha para consciência cristã. João Paulo II várias vezes pediu perdão por isso, e também o amado papa Francisco. E Deus, por onde andava Deus naqueles tempos e nos tempos de hoje quando parece não ver as novas formas de escravidão, exploração do povo, o abuso de menores ou os maus-tratos de idosos, o sofrimento psíquico e psiquiátrico que atinge do mais rico aos mais humildes, a opressão dos pobres e a devastação da natureza?

Com a pandemia essa escandalosa exploração e destruição não só se tornaram mais evidentes, como se acentuaram de forma assustadora e criminosa. Diante de tudo isso me junto a este poeta abolicionista: “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes. Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito, Que embalde desde então corre o infinito... Onde estás, Senhor Deus?.”  

Epicuro, na antiguidade, já questionava: “Ou bem Deus deseja suprimir o mal, mas não pode, ou Ele pode mas não quer. Se Deus o quer mas não pode, Ele é impotente, o que é contrário à sua natureza. Se Ele pode mas não quer, Ele é malvado, o que é contrário à sua natureza. Se Ele o não o quer nem o pode, Ele é ao mesmo tempo impotente e malvado, o que significaria dizer que Ele não é Deus. Mas se Ele pode e quer, o que só convém a Ele, de onde vem então o mal e por que Ele não lhe suprime? ”

O papa Bento XVI na Audiência Geral no dia 27 de setembro de 2006, se referindo a São Tomé dizia: “Ao mesmo tempo, a sua pergunta confere também a nós o direito, por assim dizer, de pedir explicações a Jesus. Com frequência nós não o compreendemos. Temos a coragem para dizer: não te compreendo, Senhor, ouve-me, ajuda-me a compreender. Desta forma, com esta franqueza que é o verdadeiro modo de rezar, de falar com Jesus, exprimimos a insuficiência da nossa capacidade de compreender, ao mesmo tempo colocamo-nos na atitude confiante de quem espera luz e força de quem é capaz de as doar”. O livro Introdução ao Cristianismo é um dos mais importantes do teólogo Ratzinger. Assim ele escreveu: “Tanto o crente quanto o incrédulo, cada um à sua maneira compartilham a dúvida e a fé, sempre entendidos que não procuram fugir de si mesmos e da verdade de sua existência. Ninguém pode escapar completamente da dúvida, mas nem mesmo da fé. Para um, a fé se faz presente contra a dúvida, para o outro na dúvida e na forma da dúvida”

Conhecemos e, costumamos repetir ao longo de nossas vidas, principalmente naqueles mais difíceis juntos com o pai do menino epilético: “Senhor eu creio, mas aumentai a minha fé” (Mc 9,24). Essa tradução está errada, erradíssima. A tradução mais próxima do original seria: “Eu creio! Ajuda minha incredulidade!" 

No grego está escrito: “ Πιστεύω - pisteuó (eu creio) + βοήθει – boétei (ajuda) + μου (minha) + τῇ -te (a) + ἀπιστίᾳ - apistia (não-fé). Creio, ajuda minha incredulidade”. A minha fé e a minha não-fé caminham juntas.  Ajuda, Senhor, minhas trevas luminosas, tão clara e tão escura.

A nossa fé não uma fé é estúpida, imbecil, ignorante. A verdade absoluta não é absolutista. A nossa fé interroga e faz perguntas com os salmistas ou com apóstolo Tomé. 

O grande e bom Carlo Maria Martini, teólogo, biblista, pastor e cardeal por muitos anos de Milão, um bispo realmente progressista, na inauguração da Cátedra dos Não-Crentes”, em 1987 dizia: “Eu acredito que cada um de nós tem dentro de si um incrédulo e um crente, que falam um com o outro, que se questionam, que continuamente enviam perguntas pungentes e perturbadoras um ao outro. O não-crente que está em mim perturba o crente que está em mim e vice-versa. A apropriação deste diálogo interior é importante, pois permite a cada um crescer na autoconsciência”. 

Onde está Deus? Amado irmão e irmã, companheira e companheiro, o Cristianismo tem a honestidade de não ter uma explicação. Estamos diante do mistério de Deus, do mistério da mulher e do homem e do mistério dos cosmos. E o mistério não podemos agarrá-lo, escapa-nos das mãos.

Porém, o Cristianismo tem algo maior do que toda e qualquer explicação. Não se assuste! Deus é o primeiro escandalizado com o escândalo do mal, aquele que mais sofre. Deus sofre com a gente e muito mais do que a gente com o mal que devasta o mundo: a fome, as guerras, as catástrofes, as doenças, o sofrimento e morte de inocentes, o mal moral causado pela maldade humana. Ele não é um espectador desinteressado e distante, desligado assistindo indiferente o drama, a tragédia e a comédia da existência humana e da criação.  Ele sofre por nós, conosco e em nós. Mais, Deus sofre em si mesmo.

Ele sofre por nós, quando por nós e para nossa salvação assumiu nossa carne de agonia e de prazer, de vida e de morte, ressuscitando depois para dar sentido a nossa totalidade psicossomático e espiritual. Ele sofre conosco chorando nossas lágrimas em solidariedade e consolo.

Ele sofre em nós, no mais íntimo, ou no outro, quando bem disse: “ Eu tive fome, sede... Eu estive doente, preso, estrangeiro...” (Mt 25,35). Deus sofre em cada pessoa que sofre suas angústias independente de sua classe social, sofre no sofrimento da exploração econômica, social, política promovido por um uma cartilha  perversa exclusivista e excludente. Deus sofre na Criação explorada e devastada por esse mesmo modelo contra a Deus, contra a Humanidade e contra a Ecologia.

Deus sofre e nos convoca a acabar com esse sofrimento ou, ao menos amenizá-lo, através do nosso compromisso e engajamento que neste momento, mais do que nunca tem duas frentes. Uma emergencial, para os doentes e os que passam fome. Outra, estruturante, na construção de uma justiça Ecosocial que promova uma sociedade fraterna, pacífica e feliz. Isto mesmo, feliz.

Precisamos voltar a sorrir de novo. Nestes tempos de pandemia e pandemônios suplicamos Àquele que sofre conosco que venha com sua presença ficar bem no meio e dentro de nós. 

Deus, renove em nós a esperança, o sonho e a utopia, a teimosia, a poesia. Deus, renove em nós a força, a garra, a coragem e a energia. Deus renove em nós a alegria, a felicidade, o júbilo, o contentamento, a delícia, o gozo, o prazer, a arte, a música e a dança. Nós precisamos cantar e dançar! Deus, renove em nós a saúde física, psíquica e espiritual restaurando o corpo, a alma e o espírito de todas e todos, de cada um e cada uma. Deus, renove em nós aquela sua benção que nos guarda, protege e defende de todos os perigos visíveis e invisíveis. Deus, renova em nós a paz, calma, serenidade, tranquilidade, suavidade, mansidão e leveza. O seu nome, ó Deus, é Deus-conosco, o Emanuel, que chora nossas lágrimas e sorrir nossos sorrisos. Fica conosco e em nós!

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

Edição: Vanessa Gonzaga