Paraíba

Coluna

A alta da carne e o embargo às exportações na Argentina

Imagem de perfil do Colunistaesd
Para conter inflação, exportação de carne bovina está suspensa na Argentina - Reprodução
A Argentina vive, provavelmente, o menor consumo per capita de carne em 15 anos

Por Thiago Lima*

O governo argentino anunciou, em 18 de maio, que restringiria significativamente as exportações de carne bovina do país por 30 dias como uma forma de combater a alta do preço do produto. Exceções serão adotadas para suprir as quotas outorgadas por Estados Unidos e União Europeia para carnes de alto valor agregado.

A carne bovina é um item básico da dieta alimentar do país vizinho e, historicamente, mais comum do que no prato dos brasileiros. Como nós, o povo argentino também enfrenta uma redução significativa na capacidade de comprar carne.

Na superfície, essa redução se deve a dois motivos interligados: a alta dos preços e o empobrecimento constante da população nos últimos anos. Este é um cenário agravado – mas em hipótese nenhuma criado – pela pandemia. A cesta básica total, na Argentina, que inclui alimentos, vestuário, saúde, transporte e educação, aumentou em 47,8% no último ano, portanto, acima da inflação geral, que foi de 46,3%. Naquele país, 19,5 milhões de pessoas não conseguem comprar a cesta básica total e, por esse critério, são classificadas como pobres. 

Já a cesta alimentar, que se refere a bens de primeira necessidade apenas e é considerada o parâmetro da linha da indigência, aumentou em 49,1%. Ou seja, as famílias que não conseguem comprá-la estão nos níveis mais baixos de miséria. Já a carne, produto muito consumido pelas famílias e de alto valor afetivo para a cultura dos hermanos, subiu 66,1%, muito acima da inflação geral. Por isso, a Argentina vive, provavelmente, o menor consumo per capita de carne em 15 anos.

De certo modo, este quadro é desconcertante porque a Argentina é um daqueles países em que há mais bovinos do que habitantes. São 54 milhões de cabeças de gado frente a 50 milhões de pessoas. O país é o quinto maior produtor de carne bovina do mundo e consome, em geral, 70% do que produz. Os 30% restantes são suficientes para torná-la o quarto maior exportador de carne do mundo.

Note-se, porém, que, de 2017 a 2020, as exportações passaram de 313 mil toneladas para 903 mil, e que, no ano corrente, é possível que as exportações cresçam mais 13%. Contudo, no mesmo período, a produção aumentou em apenas 324 mil toneladas. Assim, críticos argumentam que a carne exportada é aquela que o povo argentino, sobretudo os mais pobres, deixam de comer

Nesse sentido, e abaixo da superfície, o que acontece na Argentina pode ser colocado em perspectiva com uma dinâmica histórica e característica dos países periféricos e de orientação colonialista, conforme explicado por Utsa Patnaik e Prahbat Patnaik: para que os povos dos países desenvolvidos ou centrais do sistema internacional não experimentem inflação de alimentos, os povos dos países subdesenvolvidos ou colonizados não podem comer tudo o que necessitam. Se comerem, haverá menos produtos a serem exportados e, assim, aumentará a inflação de alimentos nos países do centro, justamente os mais ricos. Entretanto, o poder dos países centrais, que encontram aliados em elites periféricas há séculos, cria as condições para que isso não ocorra. Controla-se a inflação no centro e garante-se o lucro dos exportadores às custas da imposição da fome na periferia. 

A medida adotada pelo governo Alberto Fernandez tem sido, como esperado, duramente criticada pelo setor empresarial. E com certo sentido. Em 2006, o governo de Néstor Kirchner proibiu as exportações de carne por seis meses e o resultado foi, segundo La Nación, desincentivo à produção do produto, o que acabou por aumentar os preços. 

Além disso, o setor empresarial afirma que compradores estrangeiros podem perder a confiança no fornecimento argentino e, assim, pode haver efeitos indiretos negativos, como a redução da demanda externa e, consequentemente, diminuição de investimentos internos e de postos de trabalho. Por isso, o setor empresarial envolvido com a exportação de carne bovina repudiou veementemente a medida

Já o governo afirma que os empresários não têm contribuído a contento com os sacrifícios sociais que o momento exige, e que há manobras para aumento ilegal de preços ou estratégias antiéticas para se protegerem de inflação futura. Um exemplo seria a venda, em pequenos comércios de bairro, de produtos acima da tabela de “Preços Máximos”, uma política pública criada para segurar os preços de itens básicos no começo da pandemia.
 
Contudo, mesmo entre progressistas, a medida governamental não é recebida sem críticas. Isso porque ela pode, sim, passar uma mensagem política, mas, por outro lado, ela não ataca as raízes estruturais do problema. De fato, mesmo que o preço da carne baixe por um tempo, a medida pode gerar impactos adversos para outros setores empresariais, de trabalhadores e de desempregados, porque o sistema agroindustrial possui muitas ramificações. 

Portanto, o subconsumo de carne e de todos os produtos necessários para uma vida saudável só pode ser devidamente enfrentado com políticas estruturais, que enfrentem a lógica perversa da imposição da fome doméstica como forma de garantir exportações. E mais: não pode ser feito em apenas um país, pois o fechamento das exportações argentinas pode gerar inflação em países vizinhos – como o Brasil – ou mesmo mais incentivo para o avanço danoso da pecuária – também no Brasil –, que carrega consigo devastação ambiental e violência contra o campesinato. 

Por isso, as políticas de soberania alimentar devem ser intimamente conjugadas com a cooperação internacional, de modo a promover uma desglobalização humanizada das relações agroalimentares.

 

*Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB. 
www.fomeri.org
 

Edição: Heloisa de Sousa