Minas Gerais

Coluna

A morte como mercadoria

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Na foto, sepultamentos em Manaus - Foto: Altemar Alcantara / Semcom
Milicianos da saúde passaram a dominar o mercado de medicamentos

Bolsonaro tem sido definido como promotor da necropolítica, uma forma de governo que faz da morte um ativo para manutenção do poder. Vem desse método as repetidas declarações do genocida sobre o fato de o fim da vida ser inevitável e, por isso, não cobrar mais que uma cínica constatação: e daí? A vida – dos que são da sua turma – segue seu rumo, enquanto os inimigos vão ficando pelo caminho. Em linguagem direta: uma divisão entre os que devem viver e os que são mais úteis mortos. Em termos políticos, uma extensão da desigualdade social para o campo da sobrevivência pessoal.

Essa banalidade da extinção teve dezenas de exemplos desde que o presidente assumiu o governo: o estímulo ao armamento da população, o elogio de ações de extermínio, a incorporação das milícias na estrutura da segurança pública, a defesa do excludente de ilicitude como autorização para matar. E ainda o descaso com as investigações sobre a morte de Marielle Franco, a destruição programada do meio ambiente, incentivo ao uso de venenos nas lavouras, entre outras. Não é um governo que defende a vida de todos, mas que instrumentaliza a seleção dos que devem ser extintos.

A revelação do esquema de corrupção elevou a necropolítica ao patamar mais alto

Esse método agora chegou firme à saúde pública. Para quem pensava que o negacionismo em relação às vacinas e medidas não farmacológicas estava fundamentado em visões equivocadas, desprezo à ciência, convicções estúpidas e ações que privilegiam o capital em lugar da vida, a revelação do esquema de corrupção elevou a necropolítica ao patamar mais alto.

Não se trata apenas de aceitar que morram os mais velhos, os pobres, os pretos, os povos originários, os fragilizados, os moradores de comunidades e os trabalhadores que devem manter os privilégios de uma sociedade ainda escravocrata em seu cotidiano. Um passo além foi dado no darwinismo social bolsonarista: a morte agora é uma questão de grana.

Ao lado da necropolítica, entra em cena a necroeconomia. Depois de dificultar a compra de imunizantes oferecidos diretamente por laboratórios privados e institutos públicos, com impacto direto no número de mortes pela covid-19, o governo entra no jogo de forma suspeita. Passou a privilegiar uma vacina sem registro, acertou a compra a preço muito mais alto que o de mercado, estabeleceu negociação com um intermediário com histórico de fraude e ligado a empresas instaladas em paraísos fiscais.  Enviou projeto de lei para facilitar o esquema tendo à frente o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR).

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Não fosse já o bastante, tem mais. Um servidor público, Luis Ricardo Miranda, chefe de importação do Ministério da Saúde, sofreu pressão para passar a boiada da negociata, denunciou diretamente ao presidente a armação e ficou aguardando as providências cabíveis. Passou de denunciante a suspeito. Foi ameaçado e coagido por Onyx Lorenzoni, que falou em nome do governo e se enrolou em documentos e desmentidos.

Propina

O irmão do funcionário, o deputado Luis Miranda (DEM-DF), revelou em seguida que foi procurado por um lobista ligado a Barros, que ofereceu meia dúzia de centavos por vacina para calar a boca. Centavos que seriam multiplicados na casa das dezenas de milhões.  

A saga criminosa envolvendo a compra de vacinas seguiu adiante. Um representante comercial de empresa farmacêutica denunciou o pedido de propina por parte de Roberto Ferreira Dias, do Ministério da Saúde, na casa de US$ 1 por dose, para um montante de 400 milhões de doses. Na reunião, participou o coronel da reserva Marcelo Blanco da Costa, certamente integrante do “meu Exército”, como costuma dizer o presidente. O laboratório tem contrato com a Fiocruz para produzir a mesma vacina, a Astrazeneca, e por isso não precisava de atravessador. Roberto foi afastado e sua capivara vem revelando uma sequência de irregularidades.

Ao lado da necropolítica, entra em cena a necroeconomia

Todos esses fatos deixam patente que o ingrediente farmacêutico ativo que interessa ao governo é a propina, não a imunização dos brasileiros. Numa conta singela, como são necessárias duas doses para conferir imunidade, a vida dos patrícios estava valendo cerca de US$ 2 ou R$ 10 para a turma do esquema. A inversão da necroeconomia é assim: em vez de computar o valor de uso do produto para a saúde pública, aplica-se a tabela do valor de troca que vai para o bolso dos corruptos. O ativo-morte é o mais valioso do mercado, já que tem um universo potencial do tamanho da população brasileira.

Depois de mais de 515 mil mortes, o esquema deixa claro seu objetivo – ganhar muito dinheiro com o sofrimento da população –, mas não revela de cara seus motivos. Mesmo limitado e insensível, Bolsonaro sabe que a vacina é sua única saída, até para a economia. No entanto, como é próprio do protocolo miliciano, é preciso jogar uma camada criminosa sobre a realidade, de modo a tornar mais lucrativo seus negócios habituais.

O miliciano vende o que não é dele, lucra com o medo do outro e reserva para si o mercado por meio da violência. A primeira oportunidade foi com os medicamentos inúteis, que renderam muito aos fabricantes e, hoje, intui-se que parte desse lucro deve ter ido para seus patrocinadores.

Interessa ao governo a propina, não a imunização dos brasileiros

Assim como as milícias vendem segurança e outros produtos em seus territórios, os milicianos da saúde passaram a dominar o mercado de medicamentos e, em seguida, miraram seus fuzis para as vacinas. Para isso, não valia imunizante de empresa séria, produto sem atravessador, menos ainda doses destinadas apenas ao setor público por meio do programa oficial de imunização. O primeiro estágio era credenciar os produtos, depois explorá-los no PNI, por meio do pixulé, e, por fim, depois das campanhas, dominar o mercado por meio de serviços privados.

Não foi um acaso que o projeto para viabilizar a compra de vacinas pela iniciativa privada tenha sido o primeiro esforço do governo para trazer imunizantes para o país.

Essa história parecia autorizar a conhecida técnica de investigação que aconselha sempre a seguir o caminho do dinheiro. Mas há outros interesses e rotas nesse esquema criminoso. Além da grana que alimenta a voracidade dos mais ambiciosos, o governo conseguiria com essa estratégia um caixa poderoso para a campanha do ano que vem. Tudo, pelo visto, começa e termina com a tentativa de reeleição de Jair Messias. Seja para se manter no poder, seja para escapar à prisão pela enfiada de crimes cometidos. Para isso, foram fundamentais duas ações combinadas, postas em prática de maneira eficiente.

Milicianos da saúde passaram a dominar o mercado de medicamentos

A primeira foi atrasar ao máximo a vacinação, dando ao governo a chance de fazer uso eleitoral da imunização no ano que vem. Por isso o pouco caso com as vacinas e a campanha de descrédito contra os imunizantes que estavam à mão. A vacinação brasileira não está lenta, está no ritmo da campanha presidencial. Os ativos da corrupção, na casa dos bilhões, seriam o fundo financiador da reeleição de Bolsonaro.

A segunda frente consiste em sedimentar o uso da máquina pública em todo tipo de negócio. Nada melhor para ganhar dinheiro que privatizar o que é por natureza público, como a saúde. Rifar o Estado aos interesses do mercado passa a correr em paralelo à crise sanitária. Não é só a vacina e os medicamentos que dão lucro.  Na área de saúde há outras frentes promissoras.

Como, por exemplo, o retrocesso na política de saúde mental, a destruição da rede de atenção básica e o fim de programas que levam atenção a regiões mais distantes e a interrupção de fornecimento de medicamentos gratuitos. O ministro Paulo Guedes chegou a defender a concessão de vouchers em lugar de investir em serviços próprios, dizendo, cinicamente, que a população poderia assim acessar hospitais de ponta se assim o desejasse.

Bolsonaro se revela frente à nação, nu e corrupto

Na linha privatista, o governo estimula a contratação de empresas de gestão sem participação popular e persegue e extingue programas como o Mais Médicos, num misto de xenofobia e corporativismo.

São programas que vão na contramão do SUS, incentivando a incorporação da tecnologia cara, internações desnecessárias e desumanas para portadores de sofrimento, fortalecimento dos planos privados, regressão da atenção primária em favor da assistência hospitalar, enfraquecimento do controle social, que vem sendo exercido por meio de conselhos populares. A corrupção na área da saúde força cada uma dessas portas. E não é de hoje. 

Bolsonaro se revela hoje frente à nação, nu e corrupto. Não se rendeu agora à corrupção, apenas a confirmou de forma mais explícita, que é o roubo de dinheiro público, o favorecimento dos parceiros de crime e a falta de compromisso com os controles legais. Antes do episódio das vacinas, ele já havia demonstrado seu empenho em estabelecer um governo sem o respeito à lei e sem considerar o papel das instituições. Dele se dizia que podia ser tudo de ruim, desde que não fosse ladrão. Hoje se sabe que a corrupção não é um descaminho, mas um método de seu governo. E que a aposta na morte não é apenas sua arma mais agressiva, mas sua mais lucrativa mercadoria.

No reino da necroeconomia, Bolsonaro é genocida e corrupto. E corrupto porque genocida.

Edição: Elis Almeida