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Ouro, prata, esquerda e direita

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Reprodução EBC - EBC
Jogos, esportivos e políticos ajudam a entender quem somos e o tempo em que vivemos

A Olimpíada de Tóquio atrasou um ano, parece ser realizada no vazio social de uma cidade que não aparece a não ser como cenário virtual e não tem público nas arenas. Mesmo assim, tem chamado atenção e criado alguns momentos que merecem um pouco de reflexão. Uma espécie de decatlo de provas, que vão além do esporte, já deixou suas marcas nesses jogos. São momentos de debate ético, desses que, mais do que definir o certo e o errado, convoca os atletas da cidadania a colocar seus argumentos em jogo e aceitar o confronto de acordo com as regras do pensamento e da convivência.

O primeiro está relacionado com a própria realização da Olimpíada, em plena pandemia do coronavírus. A divisão se deu entre os que defendiam os jogos como manifestação de uma dupla aposta na humanidade: a capacidade de superar desafios com uso da melhor ciência e de seus protocolos de segurança e o empenho em seguir adiante, tendo o torneio como um dos símbolos máximos da consagração de um novo estágio. Do outro lado, os que ponderavam para os riscos reais de contágio e para a dispersão de recursos em meio a prioridades mais decisivas. Sem falar na submissão aos interesses comerciais que dominam o esporte de alto rendimento em escala planetária. Para quem você daria a medalha?

 Olimpíada de Tóquio teve momentos de debate ético convocando os atletas da cidadania

 

A segunda prova foi realizada pela atleta estadunidense Simone Biles, ela chegou como favorita e desistiu de quase todas as provas em nome de seu equilíbrio pessoal ou “saúde mental”, como foi destacado pela imprensa. A ginasta tem um histórico de abusos que foi colocado em segundo plano, para valorizar sua atitude como algo estritamente individual e sem relação com o ambiente de racismo em que foi criada nos EUA. Mais uma vez, há duas interpretações no solo moral: a desistência como afirmação de um valor superior, no caso o bem-estar pessoal; de outro, a perda de segurança em razão do alto grau de exigência que anistia as razões sociais para reforçar a fraqueza individual, ainda que considerada falsamente como vitória. Colocaram Simone no alto e retiraram a escada para depois estender o colchão da condescendência. É sempre melhor uma vitória moral que uma derrota de civilização.

A terceira prova que aponta para a relação entre esporte e sociedade se deu no território em que o Brasil se saiu melhor nos primeiros dias do torneio: o surfe e o skate. Pode não ter sido um acaso que, estreando nos jogos, as modalidades trouxessem com elas a necessidade de vencer os preconceitos que sempre carregaram. Considerados esportes marginalizados, quando não de marginais, já foram até mesmo proibidos em várias cidades do país. 

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A conquista de medalhas, com atletas jovens e nordestinos, passou ainda por cima dos patrocínios milionários de alguns nomes, como Gabriel Medina, que fez barulho para levar a namorada e recentemente confessou que não tomou a vacina contra a covid-19 disponibilizada para todos os atletas. Para reescrever a história, cabia transformar o que sempre foi anátema em conto de fadas. Saíram os manos e entraram as fadas.

Em quarto lugar estão as medalhas de Rebeca Andrade. Mais uma vez, os méritos da ginasta foram colocados em segundo plano, para valorizar a novela redentora da trajetória da atleta, valorizando os projetos sociais em plena temporada do projeto Criança Esperança. É sempre melhor tratar de exceções e de ações pontuais do que apresentar a situação da maioria dos talentos sem oportunidade e da falta de políticas públicas para o esporte. Enaltecer dona Rosa dá mais resultado emocional que cobrar ações educacionais e esportivas. 

As mesmas pessoas que sempre criticaram o funk passaram a comemorar a trilha com Baile de favela

 

As mesmas pessoas que sempre criticaram o funk passaram a comemorar a trilha com Baile de favela (mixada com Bach, para não radicalizar), que até ontem criticavam, afastavam de seu universo estético e criminalizavam sem constrangimento.

Na divisão da medalha entre os saltadores da Itália, Gianmarco Tamberi, e do Qatar, Mutaz Barshim, muita tinta foi gasta sem mudar a altura do sarrafo. Foi a quinta prova de fogo. Os dois atletas, empatados em suas marcas, decidiram não ir adiante nas tentativas de subir suas marcas e aceitaram dividir o ouro, numa atitude que não era vista há mais de 100 anos. 

Para alguns, foi a consagração da amizade de longa data entre os dois e da solidariedade acima da competição, já que ambos se sentiram realizados, felizes e compartilhados em seus valores pessoais. Para outros, foi um sinal da derrota do espírito olímpico, que impõe a competição sobre todas as coisas. Houve quem interpretasse como uma metáfora da divisão ideológica que adoece o mundo com intolerância. Há medalhas de esquerda ou de direita?

Na prova número seis, o debate fica com a imprensa esportiva brasileira.  Nunca se viu tanta pieguice numa cobertura. O ideal dos jornalistas e comentaristas parecia ser levar o público ao choro. Em vez de informação, melodrama; no lugar de análises técnicas e táticas, histórias de superação. Sai a narração elegante e exata para entrar a histeria patrioteira à la Galvão Bueno. 

A ideologia do esforço pessoal, que funciona bem para os ganhadores, acaba se revelando uma armadilha quando o atleta perde a competição. Afinal, todos se esforçaram e o mesmo mérito que leva à vitória não é suficiente para que todos sejam vencedores. Não se trata de justiça, mas da dura realidade: há sempre mais perdedores que vencedores, sem que isso torne os medalhistas heróis nem os que ficaram fora do pódio como derrotados na vida. A imprensa não encontrou a medida de seu mandato inegociável, seja no esporte, na economia ou na política: o que vale é a informação.

E o pecado não é apenas da imprensa brasileira. A sétima prova mostrou que mesmo o berço do jornalismo moderno, os Estados Unidos, preferiram mergulhar na mentira em nome da narrativa de sua superioridade sobre os demais países. Como não podia aceitar que a China se saísse melhor pelo critério tradicional do número de medalhas de ouro, resolveu mudar o padrão e considerar o volume absoluto de medalhas para alinhar os países. Curiosamente, a ideia partiu do The New York Times, considerado o mais importante jornal do mundo, que amargou durante o governo Trump com a enxurrada de perseguições e fake news. 

Nada como uma medalha atrás da outra para relativizar a verdade. Não se trata, é claro, de escolher um padrão ou outro, mas de deixar claro o que significa para os americanos e chineses estar à frente de qualquer disputa. Do 5G às quadras e arenas.

Cuba estrela a oitava prova. Durante muitos anos o público foi acostumado a considerar as vitórias dos atletas da ilha como uma espécie de perversão. Para levar adiante sua propaganda socialista, o país investia em esporte de forma exagerada, como se tratasse de um caso de salvamento da pátria. Nada de considerar os bons resultados esportivos como uma consequência do padrão geral de vida, educação e saúde de Cuba: os atletas eram praticamente obrigados a treinar de forma compulsiva para responder ao marketing político da Guerra Fria. Assim, o que era mérito se tornava um vício. 

Hoje, com uma delegação menor que a habitual do país antilhano em outros jogos, Cuba vem brilhando nos ringues, cravando a quarta medalha de ouro seguida para Mijaín Lopez na luta greco-romana e o segundo ouro no boxe para o pugilista Arlen Lopez, na categoria meio-pesados. Cuba pode não ser mais a mesma, mas ainda é boa de briga. A ilha parece estar sempre errada: quando estimula o esporte, promove doping ideológico; quando perde em categorias em que era reconhecida, é porque deixou de estimular na medida necessária.

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A nona disputa coloca em evidência o chamado Comitê Olímpico Russo. Depois que o país foi considerado patrocinador de uma política oficial de doping e proibido de participar dos jogos, a saída foi aceitar os atletas sem reconhecer o país. Quando os participantes inscritos pelo comitê, o ROC, vencem, ouvem um concerto de Tchaikovsky e não assistem a bandeira ser hasteada. No entanto, a cobertura da imprensa não faz a mesma distinção e sugere a todo momento que os atletas podem não ser confiáveis. 

Numa jogada de mestre, a geopolítica internacional do esporte bane os símbolos de um país de jogos internacionais (a punição segue para outros torneios), rebaixa uma nação ao comportamento de sua burocracia e coloca seus atletas sob suspeita. Quando o ROC ganha uma prova, a Rússia perde duas. E, é claro, só existe doping na Rússia.

Em décimo lugar entra a hipocrisia do Comitê Olímpico Internacional, que proibiu manifestações consideradas políticas durante a entrega de medalhas. Não há nada mais político que impedir manifestações políticas.

Estes são apenas alguns dos momentos das Olimpíadas que ajudam a entender quem somos e o tempo em que vivemos. Afinal, os jogos, esportivos e políticos, servem para isso mesmo.

João Paulo Cunha

Edição: Elis Almeida