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CRÔNICA. E numa recepção amiga, algumas dores se desfizeram

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Assim mesmo, estávamos para completar um ano de nossa cozinha comunitária - Pedro Carrano
Naquela semana de início de celebração, resolvemos ampliar a nossa produção de alimentos

O ano já está acumulado de dores, de lutas, de angústias, de cansaços, de farpas, nos olhos e nas mentes.

Assim mesmo, estávamos para completar um ano de nossa cozinha comunitária. Servimos em um país onde o povo não é assistido e não pode ter acesso ao pão mais gratuito. Ainda assim, na ação cotidiana também nos desgastamos, às vezes até mesmo nas mais gratificantes.

Naquela semana de início de celebração, recebemos a proposta de ampliar a nossa produção de alimentos e entregar 40 refeições a mais, para trabalhadores carrinheiros da associação Novo Amanhecer, na Cidade Industrial de Curitiba.

No dia 7 de setembro de 2007, em pleno dia do chamado Grito dos Excluídos, um grupo de catadores e de militantes arrebentou o cadeado de um barracão abandonado pelo governo do Paraná, para ter um abrigo e assim armazenar os materiais encontrados nas ruas, um local onde homens e mulheres não fossem prensados pelo pagamento raso diário e pudessem comercializar seus próprios produtos.

Mais de uma década mais tarde, nós reencontrávamos aquela cooperativa. Estamos acostumados a levar marmitas para dois barracões privados de reciclagem de materiais no bairro onde fica nossa cozinha. Nesses espaços, a cena de descaso, a falta de cuidado, com tudo e com todos, o assombro clássico com o patrão que, diante do nosso pedido de ajuda para contribuir com os potes da cozinha, simplesmente disse:

- Pode vir na segunda-feira, é o dia que os carrinheiros aqui sempre têm umas moedas.

- Sim, amigo, mas queremos pedir ajuda da empresa, e não tirar deles.

Reparamos também como no barracão privado, onde cada um vende seus músculos diariamente, sem segurança do dia seguinte, alugando o carrinho para poder recolher o material, indo e vindo, aparecendo e desaparecendo nesta cidade de gentes invisíveis, dia sim, dia não, transitando por essas ruas onde a concorrência é cada vez maior para garantir um pedaço do lixo. Filipe, que é jovem e já recolheu material reciclável, ficou impressionado com o poder que tem a organização. A cooperativa transpirava mais dignidade.

Então o coordenador da cooperativa nos recebe, todos nos recebem, olhar altivo, braços abertos mesmo sem estarem abertos, olhos e sorrisos vivos, com dentes, sem dentes, o barro úmido do inverno curitibano na entrada, mas o espaço arejado, a pintura e o cuidado, mesmo que a matéria-prima de alguma forma seja a sujeira da produção – e a produção hoje nos carregue de toda a sorte de sujeira e nos torne um descarte. Seres humanos tentando se sentir completos pelo trabalho, um trabalho que ao menos ali os retalha um pouco menos.

O lugar desenvolveu-se nestes anos todos, pelo menos pra quem olhava de fora, e às vezes é importante mesmo olhar a caminhada de fora. Depois soubemos dos vários problemas internos da cooperativa. Assim mesmo, a verdade é que aqueles olhares dissiparam montanhas incríveis de dúvidas como se nuvens, a cor daquele céu azul que agrada por alguns momentos, mesmo nesses tempos das mais duras secas.

Edição: Lucas Botelho