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OAB, a Casa da Cidadania, não será a Casa Grande

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OAB conferiu o título de advogado a Luiz Gama em 2015, reparando a injustiça cometida ao recusar a inscrição do jovem negro no passado - OAB SP
Mais uma tentativa de “escantear” a advocacia negra para os cargos de menor visibilidade

Ontem, 24 de agosto de 2021, comemoramos o aniversário de morte de Luiz Gama. Para quem não o conhece, Doutor Gama foi o primeiro advogado negro do Brasil. Nascido em Salvador/BA no ano de 1840, filho de Luiza Mahin e de um pai branco. Nasceu livre, foi levado ao Rio de Janeiro e vendido como escravo pelo pai, para quitar uma dívida de jogo do seu genitor.

 Doutor Gama iniciou seu letramento aos 17 anos, com a ajuda de um hóspede da fazenda na qual ele era escravizado. Autodidata, ao chegar à maioridade, conquistou judicialmente a própria liberdade. Tentou ingressar na Faculdade de Direito do largo do São Francisco, mas teve sua inscrição rejeitada por ser ex escravizado, negro e pobre. Apesar desse tratamento hostil, ele assistia às aulas como ouvinte. Luiz Gama trabalhou na defesa dos negros escravizados exercendo a profissão de “rábula” - nome dado aos advogados sem título acadêmico, por meio de uma licença especial, o provisionamento. Nos tribunais, usava uma oratória impecável e com seus conhecimentos jurídicos defendia os escravos que podiam pagar pela carta de alforria, mas eram impedidos da liberdade por seus donos. 

Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil o reconheceu como advogado, corrigindo uma injustiça cometida ao recusar a inscrição do jovem negro. Em 2017, Luiz Gama foi homenageado quando uma das salas da instituição recebeu o seu nome. Narrei a história do Doutor Gama para demonstrar que não é de hoje que, externamente, temos uma Ordem dos Advogados do Brasil que, em 90 anos de história, sempre defendeu o Estado Democrático de Direito e os direitos humanos. Temos uma OAB que, em 2014, lutou para garantir a Declaração de Constitucionalidade da Lei de Cotas no Supremo Tribunal Federal. 

Mas, paradoxalmente, no âmbito interno, temos uma OAB que ainda resiste em manter os privilégios da branquitude nos seus espaços de gestão. Nosso órgão de classe falha indiscutivelmente, na medida em que não assegura à advocacia negra o que é seu por direito. Ontem, no aniversário de morte do Doutor Gama, o Conselho Pleno da OAB Federal decidiu de forma definitiva pelo provimento parcial da aplicação das Cotas Raciais nas eleições da OAB. O Conselho determinou que a aprovação da cota de 30% para negros deve ser aplicada ao conjunto da chapa, sem a obrigatoriedade de ter cargos reservados no Conselho Federal ou na Diretoria. Na prática, a referida cota poderá ser cumprida apenas nos cargos suplentes, como uma espécie de fraude ao próprio processo institucional da OAB. Mais uma tentativa de “escantear” a advocacia negra para os cargos de menor visibilidade na instituição.

Em dezembro de 2020, foi anunciado um grande avanço: a aplicação do percentual mínimo de 30% para advogados negros, em todos os cargos, tanto na chapa principal quanto na suplência, seja nos cargos da Diretoria, seja na Escola Superior de Advocacia, na Caixa de Assistência, nos Conselhos, etc. Mas ontem presenciamos um grande retrocesso institucional. De acordo com a deliberação do Pleno, “fica delegada à Comissão Eleitoral de cada Seccional analisar e deliberar os casos onde as chapas das Subseções informarem a inexistência ou insuficiência de advogados negros (pretos e pardos) e advogadas negras (pretas e pardas) com condições de elegibilidade a concorrer nas chapas no percentual aprovado em 30% neste Provimento”.

A escritora portuguesa Grada Kilomba nos ensina que "a branquitude, como outras identidades no poder, permanece sem nome. É uma identidade que se coloca no centro de tudo, mas tal centralidade não é reconhecida como relevante, porque é apresentada como sinônimo de humano. (...) E acreditem em mim, não existe uma posição mais privilegiada do que ser apenas a norma e a normalidade". Os ensinamentos de Kilomba se aplicam perfeitamente à manutenção dos espaços de gestão na OAB. A “Casa da Cidadania”, representada por uma elite jurídica branca, defende que a ‘’normalidade’’ é ela, e que nós, membros da advocacia negra, devemos nos contentar em sermos a exceção, o ponto fora da curva. Querem fazer da OAB uma Casa Grande. Mas nós não permitiremos. Seguiremos na luta.

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do jornal

Edição: Vanessa Gonzaga