Paraíba

Coluna

A cidade e as lutas urbanas

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Quem não tem dinheiro para comprar um pedaço de chão na cidade, o que faz??  - Reprodução
a cidade é um grande espaço de conflito e de violências

Por Rafael Faleiros de Padua*

 

O espaço urbano é o lugar da vida da maioria da população mundial. Mesmo quem não mora nas cidades e aglomerações urbanas vive a influência do modo de vida urbano. Mais do que nunca, portanto, precisamos refletir sobre as questões que envolvem esse espaço da vida, obra da civilização ao longo da história, que é a cidade e o seu conteúdo, o urbano. Nesta coluna, procuraremos refletir sobre questões contemporâneas que envolvem a vida urbana, sobretudo da nossa realidade de João Pessoa e da Paraíba, assim como da realidade brasileira. O nome Lutas Urbanas pretende iluminar o fato de que a cidade e o espaço urbano são hoje objeto de disputa onde diferentes grupos da sociedade com interesses contraditórios entram em embate, uns pela dominação de grandes parcelas do espaço, outros pelo direito de ter um espaço para viver.

Vejamos essa questão através de fatos. Reportagem do Jornal A União do dia 31/08/21 (“Mercado imobiliário desenha novo espaço urbano da capital”, de André Rezende)  informava que o mercado imobiliário de João Pessoa vive um momento muito dinâmico e que movimentou na última década, de 2011 a 2020, 6 bilhões de reais em financiamentos. Esse dinamismo se refere tanto ao movimento de construções em bairros mais valorizados quanto em bairros periféricos, ressaltando o avanço do espaço urbano sobretudo para regiões da Zona Sul da cidade. Na reportagem, os interlocutores principais são representantes da Prefeitura de João Pessoa, além de representantes do SINDUSCOM-PB (Sindicato da Indústria da Construção Civil) e do CRECI-PB (Conselho Regional dos Corretores de Imóveis). Fica evidente que o foco da reportagem é econômico, pois trata-se do crescimento econômico da cidade através da produção do espaço, tanto da incorporação de novas áreas ao espaço urbano quanto da transformação de regiões já consolidadas. 

Mais recente, outra reportagem, do Jornal Brasil de Fato do dia 02/09/21 (“MTD e Rede de Direitos Humanos impedem remoção de famílias, pela PMJP, em Gramame”, da Redação BdF-PB) informa que famílias que vivem em uma ocupação na Zona Sul da cidade receberam de uma hora para outra no mês de agosto um comunicado de que seriam despejadas de suas casas por ocuparem área pública. As famílias solicitaram ajuda e o MTD (Movimento de Trabalhadores por Direitos), a Defensoria Pública da Paraíba e a Comissão de Combate à Violência no Campo e na Cidade atuaram para que os despejos não fossem efetuados e que a Prefeitura explicasse e embasasse juridicamente a sua tentativa de despejos daquela população. Uma das moradoras disse que habita naquele local há 12 anos. Aqui o foco da reportagem é denunciar uma injustiça e uma infração de direitos humanos básicos, como o direito à moradia.

Cada reportagem tem o seu objeto, mas é preciso que pensemos as duas na totalidade da produção da cidade de João Pessoa hoje. Por um lado, valoriza-se a produção imobiliária de mercado, na qual o espaço produzido é uma mercadoria mais, ou menos, valorizada, segundo a localização e os seus atributos internos, mas com certeza uma mercadoria cara. Ao mesmo tempo, famílias que não tiveram acesso ao mercado formal de moradia, muitas destas que provavelmente construíram com o próprio trabalho a sua moradia onde foi possível, em terrenos distantes das centralidades e distantes dos serviços urbanos, passam a ser ameaçadas de despejo, num evidente desrespeito aos direitos conquistados desses moradores. Essas duas realidades que se realizam em João Pessoa, de um lado o dinamismo imobiliário e de outro a ameaça de despejo de quem não possui a propriedade privada da terra formalmente, na verdade revelam um único processo: a de que o direito fundamental à moradia, que todos os cidadãos deveriam ter garantido, passa necessariamente pela mediação da propriedade privada da terra, ou seja, pelo acesso à mercadoria espaço, que é uma mercadoria cara. Mas, e para quem não tem dinheiro para comprar um pedaço de chão na cidade? 

A reflexão das duas reportagens em conjunto permite pensarmos que a cidade é um grande espaço de conflito e de violências, mesmo que esses conflitos e violências não estejam declarados como tal. A primeira violência é a naturalização que o Estado e os agentes econômicos dominantes impõem a todo o conjunto da sociedade na direção da mercantilização da cidade. Nesse processo contínuo de mercantilização dos espaços da cidade, quem não tem os meios financeiros para acessá-la terá uma piora em sua vida cotidiana, será cada vez mais segregado do uso da cidade. Outra violência é o terrorismo com que parcelas da população que vivem em ocupações e que não possuem documentos que confirmam a propriedade de sua moradia passam cotidianamente. As ameaças de despejo, e até a concretização de despejos, mesmo nesse momento de pandemia, são a concretização dessa violência. 

Sabemos que hoje a cidade de João Pessoa é objeto de grandes projetos de transformação que vão na direção da mercantilização da cidade como atrativo para o turismo e também para a agilização da produção imobiliária. O principal desses grandes projetos é o Programa João Pessoa Sustentável que terá um impacto significativo sobre as Comunidades que estão no vale do Rio Jaguaribe na região da avenida Beira-Rio. Esse programa, coordenado pela Prefeitura em parceria com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) é revelador desse sentido de cidade voltada para a geração de lucro e não uma cidade voltada para o usufruto da população. 

Ainda temos que considerar, nesse momento, a revisão do Plano Diretor de João Pessoa, que definirá as políticas urbanas para os próximos 10 anos. Essa revisão vem sendo conduzida pela Prefeitura e por empresas contratadas e pode conduzir a uma agilização mais avançada da cidade no sentido dos interesses dos setores econômicos dominantes em contradição com os interesses da população em geral.  Isso evidencia a necessidade da luta dos diversos grupos sociais oprimidos por seus direitos. Tanto no processo de implementação do Programa João Pessoa Sustentável quanto da revisão do Plano Diretor, os movimentos sociais estão atuando junto com os moradores das Comunidades da região da Beira-Rio e de todas as regiões da cidade para que direitos não sejam violados, expressando a luta pela cidade como lugar da vida e não como mercadoria.

Nessa coluna Lutas Urbanas procuraremos ressaltar as ações dos movimentos sociais que evidenciam as contradições do espaço urbano e apontam para possibilidades de avançar para um horizonte de uma cidade de direitos conquistados, que por sua vez levarão a novas lutas por outros direitos no urbano. Queremos trazer aqui elementos da cidade enquanto espaço de lutas pela perspectiva das classes que sofrem as opressões e que, mesmo como condição de sobrevivência, criam formas de evidenciar as suas necessidades, revelando a cidade como espaço de conflitos e também de criação, de apropriação concreta possível. 

Os movimentos sociais, estando na frente de luta nas comunidades, nas favelas e periferias, lutando pela moradia e por todo o conjunto de direitos necessários a uma vida digna, nos apresentam uma outra cidade, diferente da cidade tomada pelos setores políticos e econômicos que só a veem como espaço para a agilização de atividades econômicas. A cidade vista e revelada pelos movimentos sociais é uma cidade de imensas dificuldades e precarização, ainda mais nesse momento que a fome e a miséria avançam de maneira alarmante nas cidades, mas ao mesmo tempo, é também uma cidade de solidariedade entre as parcelas pobres da sociedade, que lutam pela cidade enquanto lugar da vida para além de uma sobrevivência de miséria. Nessa dialética das lutas pela cidade enquanto uso, evidenciam-se as contradições e precarizações mais profundas, que é preciso denunciar, mas também as ações que podem levar a uma cidade de apropriação. 

É com esse objetivo que usaremos esse espaço, buscando expor resultados de nossas ações/pesquisas do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” (PROBEX/UFPB), assim como de debates que participamos seja no contexto das atividades de ensino e pesquisa na UFPB, assim como e, sobretudo, no contexto do FERURB (Fórum Estadual da Reforma Urbana da Paraíba), do qual participamos da coordenação estadual como representante do GEURB/UFPB (Grupo de estudos urbanos). É nessa troca permanente com os movimentos sociais que vislumbramos construir um conhecimento mais concreto sobre a cidade e também avançarmos para um projeto de uma cidade de direitos. 

*Professor do Departamento de Geociências da UFPB, coordenador do Projeto de Extensão “Em busca do direito à cidade: ações e debates sobre as lutas urbanas” e participante do FERURB-PB

Edição: Heloisa de Sousa