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Coluna

Novo Código das Famílias cubano e a defesa da igualdade, do respeito e do afeto

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Diziam que a Constituição cubana violava os direitos das pessoas LGBT+, porque não incluía o casamento homoafetivo, mas Brasil e EUA também não incluem - Divulgação
Proposta do código em fase de debate é equiparar todas as famílias, independente de sua composição

Marcia Choueri* 

Existe homofobia ou LGBTfobia em Cuba? Sim, com certeza. E existe racismo e machismo também. Embora os meios de comunicação burgueses e alguns governos tratem Cuba como se fosse outro planeta, os cubanos são bem parecidos com os latino-americanos em geral.

E, embora a revolução cubana tenha feito um grande esforço para melhorar as condições materiais e culturais do povo, ainda existem muitos traços do período pré-revolucionário nas relações sociais e pessoais.

Isso é fácil de entender. Uma revolução socialista pode mudar rapidamente as relações econômicas, ao estatizar os meios de produção, realizar uma reforma agrária, expropriar fortunas. Mas isso (infelizmente) não realiza uma mudança instantânea na forma de pensar e agir das pessoas e instituições – que, afinal, são feitas de pessoas também.

Como eu disse, aqui em Cuba também há homofobia, racismo, machismo.

A grande diferença é que há uma decisão e um empenho institucional para que essas crenças de superioridade de um grupo em relação aos demais desapareçam da cultura cubana.

Mas o foco deste artigo é o novo Código das Famílias cubano e, principalmente, as reações que já está provocando nos meios de comunicação e redes sociais. 

Vamos abrir parênteses aqui, rapidinho. As leis de um país refletem de certa forma sua cultura, mas também mostram as forças que interagem naquela determinada sociedade. Por exemplo, uma lei que isenta de impostos as igrejas, como no Brasil, reflete o poder da instituição igreja sobre a cultura do país e, consequentemente, sobre a lei.

Se um trabalhador paga mais imposto de renda que o proprietário de uma grande fortuna ou se o agronegócio recebe mais vantagens fiscais que a agricultura familiar, isso também reflete a correlação de forças na sociedade. E assim por diante.

Voltando aos casamentos homoafetivos. No Brasil, por exemplo, a Constituição não trata do assunto, mas sempre se refere a homem e mulher, quando fala de família. A lei brasileira que trata especificamente disso é o Código Civil, que diz, em seu art. 1.514, que o casamento se realiza entre um homem e uma mulher.

Portanto a lei brasileira não contempla o casamento homoafetivo.

Mas, em 2013, pela resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, decidiu-se que nenhuma autoridade brasileira poderia recusar a habilitação, celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Foi assim que o Brasil incorporou legalmente o casamento homoafetivo.

Outro exemplo: nos Estados Unidos, a Constituição também não fala do assunto. Em 2015, o casamento homoafetivo era legal em 36 dos 50 estados norte-americanos. Uma decisão da Suprema Corte de Justiça, em junho daquele ano, proibiu o impedimento do casamento de pessoas do mesmo gênero. Por essa razão, os outros 14 estados tiveram de aceitá-lo também.

Nos dois países, isso ocorreu em datas próximas, 2013 e 2015. O que esses exemplos nos mostram é que cada país organiza suas leis segundo sua tradição, e também que, com o passar do tempo, a sociedade vai mudando, a correlação de forças se altera, e as leis têm de ir atrás, respondendo às demandas sociais e às novas configurações. 

Histórico    

Agora, sim, vamos ao Código de Famílias cubano. Primeiro, um rápido resumo histórico: o Código da Família que está em vigor foi aprovado em 1975 e, naquele momento, foi considerado um dos mais avançados do mundo. Em 2019, o povo cubano aprovou em referendo popular, por mais de 80% dos votantes, sua nova Constituição.

Como sempre acontece, quando se aprova uma nova lei magna, o país deve refazer suas leis ordinárias, para adequá-las às novas disposições. Por isso, está em discussão agora, entre outros, o Código de Famílias (destaque para o plural).

No momento da proposta e aprovação da Constituição, houve bastante barulho, inclusive internacionalmente.

Diziam que a Constituição cubana violava os direitos das pessoas LGBT+, porque não incluía o casamento homoafetivo. Como vimos, a do Brasil e a dos Estados Unidos também não incluem. Mas, como se tratava de Cuba, não iam perder a chance de criticar.

Na verdade, a Constituição de Cuba afirma a igualdade das pessoas e assegura o direito de todos a constituir família, seja qual for a sua composição. Além disso, diz explicitamente que a lei protege todas as famílias, independente de sua formação. E – única no mundo nisso – afirma que as famílias são formadas por laços de afeto.                             

Vejamos, porém, como a grande imprensa trata o assunto. Numa notícia de 2020, o Washington Post informa que o filho de um matrimonio homoafetivo – uma cubana e uma norte-americana – foi registrado em Cuba e, pela primeira vez no país, a certidão qualifica ambas como “mãe”. Um avanço, certo?

Veja o que diz o jornal: “A notícia é uma grande vitória […] dentro de uma sociedade que se rege, em grande medida, pelas históricas normas de um Estado homofóbico e machista”. A parte que grifei é preconceituosa e demonstra um péssimo jornalismo, já que não se trata de informação e justamente contradiz a essência da notícia. Mas é dessas “notícias” que se alimenta a opinião pública em geral.

O que ocorreu realmente em 2019, durante a discussão do projeto da Constituição? A proposta do texto incluía explicitamente que o casamento era a união entre duas pessoas (e não entre homem e mulher), o que tornava legal e imediatamente aplicável o matrimônio homoafetivo. Setores conservadores  –  especialmente de igrejas evangélicas, mas não apenas – reagiram contra esse artigo e criou-se muita polêmica.

Decidiu-se, então, modificar o texto, garantindo a todas as pessoas o direito de constituir família, e deixando a definição de matrimônio para o Código da Família.

A consequência mais visível dessa decisão é que as pessoas que mantêm relações homoafetivas continuaram sem poder contrair matrimônio. Isso foi exaustivamente usado para indispor ativistas de movimentos pelos direitos LGBT+ contra Cuba. Como vimos, a imprensa burguesa não tem pudor em mentir e distorcer.

Mas há uma outra consequência, que tem a ver com a sociedade cubana em geral. Com essa decisão naquele momento, a nova Constituição – que trata de todos os aspectos da vida do povo – foi aprovada pela ampla maioria dos votantes. Ou seja, a sociedade cubana reconheceu essa lei como reflexo de sua cultura e da relação entre as forças que atuavam na sociedade no momento.

O que mais se ganhou com essa decisão? Tempo para discutir melhor essa e outras questões e aproximar-se mais do consenso. Porque, ainda que não se possa afirmar que o sistema cubano seja plenamente socialista, o país está construindo seu caminho para o socialismo, e isso, sim, está garantido na Constituição como cláusula pétrea, ou seja, que não pode ser alterada.

Cuba está construindo uma sociedade sem divisão de classes, mas isso não significa que todos pensarão igualmente. Os grupos sociais têm visões diversas, e é verdade que, neste momento, alguns ainda conservam valores de supremacia – racismo, machismo e homofobia, por exemplo – e acreditam mesmo neles.

Novo código

Agora, com a proposta do Código de Famílias em mãos, chegou o momento de avançar nesse caminho. O texto aborda muitas questões importantes. Para elaborá-lo, a comissão – composta de 31 membros, entre deputados, juristas e representantes de organizações de massa – estudou a legislação de vários países.

Neste momento, o projeto está na fase de discussão pública, sendo analisado e discutido amplamente, pelos meios de comunicação.

Receberá também os aportes de especialistas de diversas áreas, não só da jurídica, mas também da psicologia e sociologia, por exemplo, e das organizações e população em geral. Para tornar essa fase o mais ampla e transparente possível, o Ministério de Justiça publicou o texto integral em seu site e divulgou um e-mail exclusivo para receber comentários, críticas e sugestões sobre o projeto. O texto foi divulgado também por vários meios de comunicação, o objetivo é que chegue a todos.

Alguns aspectos relevantes: ele é considerado o código da inclusão, já que equipara todas as famílias, independente de sua composição. Ou seja, a visão é de que todas as famílias têm a mesma importância e gozam dos mesmos direitos. Não há um formato de família considerado “normal”, hegemônico.

Contempla as questões de equidade de gênero, assegurando direitos e responsabilidades iguais e dando instrumentos para a proteção contra a violência de gênero. Além disso, trata especialmente dos direitos das crianças e adolescentes, e de qualquer membro da família que possa ser ou estar em condição de vulnerabilidade. Para isso, propõe a criação de uma defensoria especial para os vulneráveis.

O processo de discussão e aprovação ainda terá outras fases e culminará com a aprovação pela Assembleia Nacional do Poder Popular e finalmente por um referendo popular.

É uma lei bem atual e muito cubana, o plural no título já anuncia seu alvo: o novo Código de Famílias de Cuba defende a igualdade, solidariedade, respeito e afeto como valores das famílias, e é inclusivo, garantindo a equidade entre todas as famílias.

A grande imprensa não vai divulgar nada disto. A tarefa é nossa, dos que lutamos por um mundo mais justo e igualitário.

*Integrante do Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba.

Edição: Mariana Pitasse