Rio Grande do Sul

Coluna

Na gramática bolsonarista liberdade e democracia são contradições

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"No Brasil, nos dias de hoje, o bolsonarismo, aqui tomado como um apelido para um largo campo de reacionários de várias espécies e gêneros, invoca a ideia de liberdade contra a ideia de democracia" - Guilherme Gandolfi
O bolsonarismo alega o princípio da liberdade para corroer o princípio da democracia

Quase sempre pensamos que os conceitos de liberdade e de democracia são sinônimos ou, ao menos, que caminham convergentes. Mas nem sempre é assim.

A tradição contratualista da filosofia política, base fundamental do pensamento político moderno, contrapôs o divino ao natural e o natural ao racional. Tomas Hobbes estabeleceu teoricamente a oposição frontal entre liberdade natural e liberdade civil. A necessidade da construção da racionalidade, o que para ele tem o Estado como forma suprema e incontornável, faz com que os indivíduos possam transitar do estado de natureza, onde tudo poderiam fazer - mas em contrapartida tudo poderiam sofrer - para ascender ao estado civil, onde o contrato social entre os indivíduos permitiria fazer o que não estivesse em contradição com o outro para, em contrapartida, terem a segurança de que o outro não lhe fizesse o mal supremo. O Estado moderno e absoluto drenaria dos indivíduos todo o poder e legitimidade para regular e garantir a ordem da liberdade civil, tornando-se o juiz e o policial.

Dentro da mesma inovação, outros filósofos empreendem uma virada teórica dando base ao pensamento liberal que claudica até hoje. Jeremy Bentham e Stuart Mill se baseiam no princípio da utilidade para afirmar que é preciso submeter-se ao interesse da comunidade para garantir a felicidade dos indivíduos, objetivo central dos seres humanos. Os indivíduos constroem as regras, portanto a comunidade, mas em favor de suas capacidades e sem abdicar de sua legitimidade em favor do soberano, mas a consolidam através da prosperidade e integridade de suas liberdades e racionalidades.

A liberdade não nasce, portanto, associada à ideia de democracia moderna. Nasce associada ao individualismo racionalista. A democracia vem a surgir com o reconhecimento dos conflitos, primeiro dos indivíduos com o soberano e contemporaneamente entre as classes sociais. O capitalismo incorporou milhões de “não indivíduos” ao processo produtivo e deles, através da realização do trabalho, depende para seu desenvolvimento e sobrevivência, transformando-os em sujeitos formalmente iguais, porém economicamente desiguais. A democracia liberal surgiu como forma de contraposição ao poder absoluto do rei, mas no mundo moderno desenvolveu-se como controle de conflitos insuperáveis entre proprietários e trabalhadores.

Para as sociedades latino-americanas, o sistema democrático que emergiu após a queda das ditaduras militares dos anos 1970, se vinculou à emergência de frações de classes trabalhadoras que passam a exigir e conquistar direitos dentro do capitalismo. Direitos os quais geram uma ideia de liberdade individual não somente para os proprietários. A liberdade de comer, a liberdade de estudar, a liberdade de ser igual, a liberdade de ser diferente, conquistadas nos regimes democráticos reforçou a aparência de igualdade absoluta entre os indivíduos.

Contudo, evidentemente, não eliminou a separação real estabelecida na infraestrutura da sociedade. A vinculação entre liberdade e democracia é menos epistemológica, portanto, e mais uma construção histórica, ideológica e política. Como tal vinculação é frágil, pode ser rompida por uma nova situação econômica, uma nova correlação de forças e, fundamentalmente, por uma nova hegemonia.

É exatamente o que ocorre no Brasil nos dias de hoje: o bolsonarismo, aqui tomado como um apelido para um largo campo de reacionários de várias espécies e gêneros, invoca a ideia de liberdade contra a ideia de democracia. A ditadura seria, inclusive, o remédio para reestabelecer a liberdade natural perdida pelos efeitos da democracia. A democracia teria retirado a liberdade ao impor regras politicamente corretas, ao impor a vedação à segregação de vários tipos, portanto é a democracia que deveria ser derrotada para que os proprietários possam estabelecer a liberdade a qual tem direito por mérito da prosperidade. A liberdade do mais forte, do mais rico, do mais privilegiado, do superior racial, do gênero dominante. Tal esforço, nitidamente de reação à evolução da situação política dos trabalhadores, fica sintetizado na ofensiva retórica e material contra o “politicamente correto”. Seria a liberdade suprema de oprimir e narrar a opressão.

Quando Eduardo Bolsonaro diz que “(...) muita gente já teve covid, mas a gente não pode falar. É quase um regime talibanês (sic) em que se você falar algumas coisas como o que está tomando é capaz deste canal cair”, ou ainda quando Augusto Nunes, colunista da Jovem Pan, invoca sua liberdade de resistir ao Estado para não tomar a vacina anti Covid, ambos não estão falando de liberdade em seu sentido universal e generoso. Falam em seu sentido particularista de privilégio de classe. A invocação da liberdade como contraposta à democracia tem o sentido de restaurar a tradição e a moral do Brasil de 50 anos atrás para, fundamentalmente, eliminar o, já combalido, conjunto legal que ainda garante alguns direitos dos trabalhadores.

Tal regressão, em toda sua extensão, somente pode ser realizada em uma situação autoritária onde as vítimas da redução de direitos e da estrutura de classes não possam organizar forças para resistir. O bolsonarismo, como de resto o neofascismo, alega o princípio da liberdade para corroer o princípio da democracia. Aquilo que para descuidados parece ser um arroubo gramatical é em verdade uma manobra autoritária.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko