Minas Gerais

Coluna

Terceira via é invenção da imprensa

Imagem de perfil do Colunistaesd
A mídia comercial já deu início ao processo de produzir seu candidato - Reprodução Youtube
A mídia comercial já deu início ao processo de produzir seu candidato

Não há nada mais paradoxal do que acompanhar a imprensa hegemônica criticando de forma corrosiva o governo Bolsonaro. Não apenas porque ela apoiou o golpe contra a democracia brasileira que tirou Dilma do poder, ajudou a condenar Lula e extirpá-lo da eleição, naturalizou uma polaridade inexistente e vitaminou a candidatura do ex-capitão. Esse sempre foi o padrão. O que mudou foi a forma como os profissionais das grandes empresas passaram a se comportar em relação ao poder.  

A imprensa entrou no jogo por questão de sobrevivência, não de moral

 

No primeiro momento, não se podia sequer falar em direita em jornais e TVs, quanto mais em extrema direita ou fascismo. Jair Messias era apenas um candidato-valise, no qual cabia tudo e a tudo era desculpado, desde que mantivesse seus compromissos com o mercado. Valia racismo, preconceito, armas e até defesa da tortura. No instante seguinte, os porta-vozes do jornalismo hegemônico passaram a competir em matéria de crítica política, administrativa e até psicológica. Bons para passar pano, se mostraram ainda melhores como paladinos da democracia.

A primeira explicação para a mudança de rota poderia ser dada pelo próprio comportamento do presidente, que já na primeira manifestação pública depois de eleito atacou a imprensa comercial e convocou seu gado para engrossar as milícias digitais. No mesmo gesto, agradava sua base anticomunista e anti-intelectualista, desafiava a dependência da opinião pública formada por meios tradicionais e investia contra o negócio da mídia, inclusive com ameaças de corte de verbas. 

Não há conciliação possível no capitalismo, há luta de classes

Com um programa tão ambicioso de confronto, recebeu o troco e dobrou a aposta. Foi quando percebeu que alimentar a divisão era o melhor negócio para manter sua base unida.

A chamada imprensa profissional usou então o botão vermelho de emergência, que acreditava ser infalível: convocou seus profissionais mais destacados para atacar o governo em geral e o presidente em particular. Nada que não fosse merecido, mas também que não fosse hipócrita e, em certa medida, chantagista. Para não fazer feio demais em sua mudança drástica de estratégia, escolheu alguns territórios inquestionáveis, como a censura às artes, o meio ambiente e, em tempos de pandemia, a defesa dos princípios da ciência. Nunca se viu tanto cientista com lugar de fala e tanto jornalista lembrando lições do ensino médio.

Criou-se assim um contexto complexo, em que valem as ciências naturais e exatas, mas não as ciências humanas. Em que os especialistas em microbiologia se tornam heróis, mas especialistas em saúde pública (com sua proximidade com as ciências sociais) são colocados quase sempre em segundo plano. Tudo pela ciência da saúde, mas muito cuidado com a política de saúde. O SUS se tornou um valor de civilização, quando se trata de imunização, mas não se expande a mesma defesa para outros territórios sanitários, como a saúde mental, por exemplo, que continua sob ataque do setor privatista e de defesa dos manicômios.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Ou a preocupação com a atenção básica em regiões mais distantes e desassistidas, esfacelada com o fim do programa Mais Médicos, sem que nada fosse colocado no lugar e sem que a sociedade se movimentasse para enfrentar essa ação desumana. Extinção de programas de medicamentos básicos, redução orçamentária completam o quadro de um sistema tratado com descaso e que só sobrevive pelo engenho de sanitaristas que o criaram, da força popular dos conselhos que mantiveram a vigilância popular e de gerações de profissionais devotados que nunca foram valorizados e passaram a receber aplausos quando a ameaça de morte chegou à classe média das grandes cidades.

Jornalistas e comentaristas (essa nova modalidade de ideólogos a serviço do patrão) da Globonews, CNN, Folha e Estadão, entre outros, passaram a ser críticos do governo, sobretudo com o recurso da ciência como argumento de autoridade. Só então o presidente, que há 30 anos ostentava publicamente o pior comportamento público e a execrável campanha contra os direitos humanos, passou a ser objeto de censura. 

O elogio de torturadores, a defesa do estupro, da violência policial, da destruição do meio ambiente, do machismo, do preconceito e da discriminação de todas as formas, tudo isso só recebeu luz depois que o negacionismo científico entrou em cena. Até então, Bolsonaro era exótico e polêmico.

A imprensa entrou no jogo por questão de sobrevivência, não de moral. E, instalado o jogo da desconstrução, começa agora a segunda etapa de seu trabalho: a invenção da terceira via contra todas as evidências das pesquisas. É preciso lembrar que o combate à esquerda em geral e ao lulismo em particular é outro nome do jornalismo brasileiro dito profissional. É o que, há décadas, vem conduzindo a pauta dos veículos comerciais e, é preciso reconhecer, com relativo sucesso. 

Ao atacar Jair Messias, no entanto, tiveram que conviver com o retorno de Lula aos primeiros lugares nas pesquisas e com a polarização inevitável para a eleição do ano que vem.

Nem direita nem esquerda

A mídia comercial já deu início ao processo de produzir seu candidato. A primeira ação tem sido, mesmo com a ausência de qualquer dado da realidade, pautar o debate sobre a chamada terceira via. Como não há significância estatística, lança mão exatamente do que condena no governo em relação às vacinas: o negacionismo. Assim, não existem mais direita e esquerda. Não se devem levar em consideração conceitos da ciência social, mas impressões particulares. Os números das pesquisas devem ser tratados com liberdade fantasiosa, não com rigor analítico.

A consumação desse cenário levou a criação da síndrome da terceira via, que carrega com ela uma série de preceitos morais, muito mais que políticos: equilíbrio, fim da divisão ideológica, conciliação, capacidade de diálogo, defesa da economia de mercado, consenso e institucionalidade.  O jornalismo familiar faz o que pode para naturalizar esse trio problemático – esquerda, direita (ambos radicais e inconsequentes) e centro (harmonioso e racional) – contra todas as evidências da realidade política. O prêmio, anunciam, é uma sociedade pacificada, sem Lula nem Bolsonaro.

Em primeiro lugar, a crítica à pessoa do presidente se sobrepõe às críticas ao governo como portador de projetos destrutivos. A história recente de bons resultados do campo da esquerda é sempre soterrada pela lembrança da corrupção como um dado estrutural daquelas experiências. Os responsáveis pelas políticas públicas de governos anteriores não são chamados a balizar as avaliações sobre os descaminhos atuais, perdendo substância analítica e informativa. Os cientistas políticos são alijados da arena do debate público na mídia, substituídos pelo imediatismo e impressionismo iracundo dos acima referidos comentaristas.

Além disso, a invenção da terceira via como solução para os impasses nacionais sempre é feita a partir das ideias da direita. Ou seja, primeiro se nega que a polarização esquerda-direita seja válida ou minimamente inteligente, depois descarta-se tudo que se aproxima de propostas populares, como se o equilíbrio fosse, por natureza, capitalista, liberal e, se possível, conservador. Ou alguém seria capaz de localizar Ciro Gomes no espectro ideológico da centro-esquerda? 

A terceira via é apenas o lugar em que esperam que seja chocado o ovo do bolsonarismo light, mais light que bolsonarista.

O jornalismo brasileiro padece ainda de um mal difícil de ser superado. Os barões da imprensa acreditam que só é possível fazer um bom trabalho no âmbito da iniciativa privada. Imprensa séria, por natureza, uma atividade liberal, necessária para a defesa da democracia, sem qualquer possibilidade de vínculo com os valores públicos. Vem daí a alergia ao debate sobre a regulação econômica e o descrédito com todas as experiências de comunicação pública. É bom lembrar que, nos dois casos, tanto de controle como de exercício de veículos públicos, os melhores exemplos vêm de nações liberais, como os EUA e Inglaterra, e não de países socialistas.

A primeira tarefa dos meios de comunicação comerciais está dada: não permitir a reeleição de Bolsonaro, que faz mal ao país e, principalmente, aos seus negócios e influência na formação da opinião pública. Aqui, a ferramenta é a capa da defesa da ciência e do humanismo. O segundo passo é liberar o ataque a Lula, usando de todos os meios, sobretudo a memória seletiva e o próprio repertório de mentiras construído ao longo dos anos. 

A terceira tarefa é definir um nome viável e confiável para retomar o processo iniciado com o impeachment e a desmontagem do Estado social. Fazer um by-pass a partir de Temer. O instrumento tem sido a invenção de uma falsa ideia de conciliação, mais moral que política.

Aos que tanto defendem o método científico, talvez seja a hora de apelar para ciência da história: não há conciliação possível no capitalismo. Para quem tem compromisso com a história não há vacina, mas luta de classes. 

 

Edição: Elis Almeida